De ontem e de hoje – A pergunta por Licínia Quitério A cozinha tinha uma porta que dava para o quintal, e na porta havia um postigo, um quadro de quatro vidros. Naquele tempo, havia muitas moscas que poisavam e caminhavam nos vidros, vagarosas. De tarde, eu observava as moscas que não faltavam ao seu passeio ao Sol, nos vidros virados ao Sul. Chegava-me mais à porta até elas debandarem. Deixavam marcas redondinhas, pequeninas, nos vidros, que limpava com os dedos, quando a mãe não estava a olhar.…
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Crónica de Licínia Quitério | Um tipo comum
De ontem e de hoje – Um tipo comum por Licínia Quitério Era um tipo comum, bom profissional do seu ofício, dedicadíssimo aos patrões, melhor, fidelíssimo, acérrimo defensor se alguém a eles se referisse com irreverência ou mágoa. Dizia para quem o queria ouvir que gostava mais da empresa do que da sua família. Talvez levado por um copito a mais, num dia em que um patrão desqualificou o seu trabalho, perdeu as estribeiras, zangou-se a sério, avermelhou como pescoço de peru, disse ao patrão o que pensava…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | Ela tem medo
De ontem e de hoje – Ela tem medo por Licínia Quitério Ela tem medo. Do dia que começou menos mal, mas nunca se sabe como vai acabar. Da noite, porque não há meio de se ver livre das insónias. Deste Verão quente como não há memória, a trazer a calamidade dos incêndios que nada poupam. Deste Inverno, que assim morno só pode trazer o diabo no ventre, as gripes que o digam, para não falar dessas doenças modernas Ela tem medo. Do mundo, que anda tão perigoso,…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Maiorca
De ontem e de hoje – Maiorca por Licínia Quitério Talvez os testemunhos envergonhados de um continente há muito afundado. A meio caminho entre a África e a Europa, as Baleares são um misto destes dois mundos. Nelas se casam a palmeira e a alfarrobeira. O Sol escalda e desidrata coisas e pessoas. O mar é azul e morno e os poentes bruscos e incolores. Ao Verão de Maiorca acorrem gentes do Norte e as praias ficam pejadas de corpos esbeltos e longilíneos coroados de cabeleiras loiras-brancas. Às…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Marinaiça
De ontem e de hoje – Marinaiça por Licínia Quitério A Marinaiça Alexandre está agora menos mal. Era a do meio de três moças. O pai, Manuel Alexandre, morreu com o “saluço”. Naquela altura ainda não sabiam duma erva que se dá a cheirar ao doente e fica curado. Depois a mãe deu-a a uma senhora já com uns anitos que vivia num monte vizinho, que era mesmo dela e que só tinha uma filha já mulher. “Vocemecê podia dar-me uma das suas moças!”. Foi ela, a Marinaiça,…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – A Dona Rosária
De ontem e de hoje – A Dona Rosária por Licínia Quitério Na loja da dona Rosária havia tudo, cabia tudo, nada se limpava, nada se fiava, nada tinha peso certo, nada tinha preço certo. Na montra da loja da dona Rosária havia um amontoado de objectos, grandes, pequenos, médios, de caixas, mais ou menos amolgadas, de moscas mortas de tédio, lá pelo meio. A loja onde reinava, absoluta, a dona Rosária, era um armazém de sacos, de tulhas. No balcão que sobrava dos objectos, dos sacos, das…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Há que resistir
De ontem e de hoje – Há que resistir por Licínia Quitério – Há que resistir! – Respondia invariavelmente a quem lhe atirava o habitual – Como vai isso?-*-oikk Firmava a bengala no chão, a evidenciar algumas sobras de vitalidade, abria quanto podia os olhos esverdeados, agora enevoados pela poeira do muito tempo vivido, e repetia, com a voz já a quebrar na dentadura que oscilava: – Há que resistir! Se o ouvinte era “da cor”, puxava conversa: – Isto está cada vez pior. E andaram aqueles homens a…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Ir a Lisboa
De ontem e de hoje – Ir a Lisboa por Licínia Quitério Iam a Lisboa visitar as velhas amigas que há muitos anos, tantos quanto somavam três gerações bem contadas, emigraram para a cidade, levadas pelos pais, em busca, como todos os deslocados deste mundo, de melhor fortuna. Moravam numa grande cave que servia de habitação de porteiro, com muitos compartimentos e um longuíssimo corredor. Só menos de metade da casa recebia luz do exterior, através de pequenas janelas basculantes, abertas e fechadas com o auxílio de uma comprida…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Coisas velhas
De ontem e de hoje – Coisas velhas por Licínia Quitério Nas casas sempre habitam coisas velhas, antigas, gastas, feridas pelo tempo, pela desatenção, preteridas pelas novas recém-chegadas, com outro brilho, outra utilidade, diferentes no desenho e na cor. Nas mudanças de casa, nas mudanças de gente, escaparam à devora de usurários e ao lugar dos lixos. Foram-lhes concedidos sótãos esconsos, gavetas, arcas de memórias. Quando chegaram até mim, procurei-lhes as feridas, tratei-as como pude, fui espreitando as marcas que me contassem histórias de outro tempo, de outra gente.…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O PBX
De ontem e de hoje – O PBX por Licínia Quitério A miúda gostava das tardes quentes de verão na aldeia quando a tia Arminda, encostada a porta da rua da saleta, limpava com um lencinho as pérolas de suor da testa e do decote e se sentava frente ao aparelho do PBX para tirar cavilhas, meter cavilhas, baixar patilhas, levantar patilhas, com o olhinho atento às luzinhas que acendiam ou apagavam. E a voz era doce, delicada, ao dizer, Boa tarde Torres, Dê-me troncas, Ó Torres dê-me o…
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