Opinião Política | Mário de Sousa (CDS-PP) – ‘A Leitura prejudica gravemente a Ignorância’

‘A Leitura prejudica gravemente a Ignorância’

 

“Descobri pela primeira vez que sabia ler aos quatro anos.- Já tinha visto vezes sem conta as letras que sabia (porque mo tinham dito) serem os nomes das imagens debaixo das quais se encontravam. … No entanto, estas revelações eram actos comuns de magia…

… de repente, soube o que elas eram; ouvi-as dentro da minha cabeça, o resultado de uma metamorfose de linhas pretas e espaços brancos numa realidade sólida, sonora e com sentido…Ao conseguir transformar simples linhas em realidade viva, tornara-me todo-poderoso. Sabia ler.…

Só aprendi a escrever muito mais tarde, quando tinha sete anos. Talvez pudesse viver sem escrever. Não acho que pudesse viver sem ler.”[i]

Esta experiência descrita por Alberto Manguel foi com grande probabilidade vivida pela maior parte de todos nós, com os nossos pais e avós, no infantário ou quando entrámos para a escola.

A leitura é-nos tão essencial à vida como respirar. Não se leem só letras, leem-se sinais, aspetos, caras, gestos, paisagens, desenhos, partituras musicais, cores, pinturas, etc. Tudo na nossa vida é lido e interpretado. Uma sociedade pode existir sem escrita mas nenhuma sociedade pode existir sem a leitura. As sociedades sem escrita têm um sentido linear do tempo, ao passo que nas sociedades letradas o sentido do tempo é cumulativo.[ii] Mesmo nas sociedades que registam a sua existência (têm escrita), a leitura precede a escrita.

É este sentido de tempo cumulativo que torna a leitura importante e que faz com que ela seja descurada ou controlada e dirigida. Quando nada se faz para cuidar e incrementar a postura de ser leitor, de procurar saber, de se esclarecer, contribui-se para a omissão do conhecimento, o que em nada abona os poderes instituídos.

È conhecida a frase que circula nas redes sociais: A Leitura prejudica gravemente a ignorância. O saber cumulativo permite-nos questionar mesmo quando tudo parece ir bem. O esclarecimento acarreta consigo o ‘mau hábito’ de escrutinar, de não deixar que as decisões de outrem se sobreponham aos nossos interesses e escolhas. Calar com fait divers esta necessidade de leitura mudando o foco da sociedade para eventos de certeza mais apelativos mas muito pouco exigentes na acumulação de saberes, é a atitude utilizada por quem nos topos dos poderes reclama para si a incontestabilidade das suas decisões.

 

Vem isto a propósito de Portugal, um país de poetas, não ler. Cada vez se editam mais livros mas com edições mais pequenas. Publicam-se cerca de 19.000 títulos/ano mas 60 a 70% desses livros são vendidos entre Setembro e Dezembro. Prendas de Natal! E mesmo assim, o que mais se vende são livros de não ficção; a autoajuda à cabeça. Literatura e ensaio apresentam valores muito baixos. Só 25% dos adultos lê um livro/ano e são as mulheres que mais leem. De quem lê, apenas 30% o faz por prazer o que nos coloca muito mal na Europa.

Infogravura Expresso

E no nosso concelho que panorama temos? Não desmente as estatísticas. É mau.
Embora tenha sido até 2011 um concelho em que as Bibliotecas Municipais proporcionavam eventos literários, oficinas de leitura, escrita criativa, poesia, etc., e a atividade editorial camarária grande, com a chegada da crise tudo desapareceu. Apenas se mantiveram eventos de histórias para crianças nas Bibliotecas Municipais. Os adultos a chegarem ou já na 3ª idade apoiados pelas Universidades Seniores mantiveram um razoável nível de acesso à literacia o que não aconteceu com a faixa dos jovens adultos e adultos até aos sessenta anos.
Passou a crise mas a carestia de eventos literários numa Vila que possui um Palácio Nacional com uma das mais famosas bibliotecas do Mundo mantém-se arredada dos livros e das leituras. E para que não existam equívocos o Congresso “José Saramago e o Memorial do Convento” que decorreu no Palácio Nacional de Mafra, partiu de uma iniciativa do Município de Loures.
Mafra não lê e mesmo nos concertos musicais, pela quantidade de folhas de sala abandonadas nos bancos, se pode entender o interesse em ler. Se inquirida, a maior parte não sabe o que ouviu.

Existem apenas duas ou três livrarias no concelho e que se dependessem dos livros já tinham fechado. Uma feira anual na Ericeira é o balão de oxigénio. A atividade editorial camarária deu passos tímidos no sentido de apresentar serviço. Seja bem-vinda se vier por bem e se não for casuística. É uma pena Mafra ser só música. Que bem que lhe ficava acrescentar ao título a palavra ‘Leitura’
.
Termino com Michel Certeau sobre o que é um leitor. Pode ser que quem de direito se entusiasme e se lembre de aumentar a verba destinada à leitura neste concelho.

Longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros dos lavradores de outros tempos mas no solo da linguagem, cavadores de poços e construtores de casas, os leitores são viajantes; andam pelas terras dos outros, nómadas caçando furtivamente através dos campos que não escreveram, … A escrita acumula, armazena, resiste ao tempo estabelecendo um lugar e multiplica a sua produção através do expansionismo da reprodução.
A leitura não é garantida contra o desgaste do tempo (esquecemo-nos e esquecemo-la), não conserva ou conserva mal o seu saber, e cada um dos lugares por onde passa é a repetição do paraíso perdido.”

Mafra, 4 de Dezembro de 2019
Mário de Sousa


[i] Manguel, Alberto, Uma História da Leitura, Lisboa, Editorial Presença, 2010

[ii] Philippe >>Descola, Les Lances du Créspuscule, Paris, 1994

[iii] Michel de Certau, L’Invention du quotidien, I, Arts de faire, 1980 in Chartier, Roger, A Ordem dos Livros, Lisboa, Passagens, 1997

 


Pode ler (aqui) os outros artigos de opinião de Mário de Sousa.


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