“A minha mãe que me ature”
O estado da habitação
Quase diariamente, na imprensa nacional, aborda-se a habitação em Lisboa. De vez em quando, a habitação no Porto. Pouco mais. Mesmo as políticas de habitação nacionais têm sido muito focadas em responder aos problemas de habitação típicos dos centros históricos das grandes cidades. São medidas necessárias, positivas, mas manifestamente insuficientes.
Falo dos incentivos fiscais aos senhorios que promovam o arrendamento de longa duração, das alterações legislativas à famigerada “Lei Cristas”, hoje desconstruída, das alterações à regulação e fiscalização do Alojamento Local, do combate ao bullying imobiliário e outras medidas adotadas, e bem, no último ano. Mas o mercado continua a funcionar, é assim mesmo, a especulação imobiliária continua a existir, os preços, embora estejam a entrar em fase de estagnação, estão muito elevados e o acesso a habitação digna e acessível parece um desafio cada vez mais difícil de superar. Também aqui em Mafra.
No outro dia, na minha viagem diária de autocarro entre Mafra e Lisboa, apanhei meia conversa entre duas mulheres, arrisco dizer que pouco acima dos 30. A da esquerda lamentava a semana árdua que se aproximava, pois só teria até ao final do mês (de junho) para sair da casa que habitava com o namorado. Haviam sido forçados a sair da casa que tinham alugado há uns anos, informalmente (entenda-se, sem contrato), porque seria posta à venda. Mudaram-se para esta e assinaram contrato de um ano, que agora termina. A casa, de julho a outubro, vai funcionar como Alojamento Local, “mas podemos voltar em novembro, que ele gostou de nós”. Não é caso único e talvez nem seja o mais problemático. O verdadeiro problema está na resposta à pergunta: “Então e para onde é que vão agora” – “Agora? Então agora a minha mãe que me ature.”
A conversa prolongou-se e eu confesso que prestei mais atenção do que devia. Procuraram casa. Ao preço que podem pagar duas pessoas que trabalham em serviços (ele num restaurante, ela não sei, uma loja talvez), só encontraram casas degradadas ou muito longe dos locais de trabalho. Sem carta de condução, viver fora do eixo urbano em Mafra pode ser um impedimento. Sem alternativa, ela propôs voltarem a casa dos pais. Adiam-se os planos, vendem-se móveis no OLX e converte-se a garagem numa sala e WC para “termos mais privacidade, sabes?”.
Isto é um retrato muito claro (e curto, porque um artigo não ser quer mais longo) do que se passa hoje no eixo urbano do concelho de Mafra, em linha reta da Ericeira à Venda do Pinheiro. O arrendamento de longa duração numa habitação digna é um bicho de sete cabeças. É preciso responder e é preciso responder já. Cabe ao Estado, mas também aos municípios, garantir o acesso à habitação, promover habitação acessível a todos, também assim obrigando o mercado a arrefecer.
A Câmara de Mafra, perante um município jovem e em crescimento, tem de avançar com medidas concretas de habitação no imediato. Tem de centrar a habitação como estratégia fundamental para o município. De que vale o resto se não pudermos morar aqui? Precisamos de habitação social, em resposta a carências socias e económicas específicas, mas a prioridade deve ser, arrisco dizer, a habitação a custos controlados. Seja de iniciativa pública ou numa parceria com privados, é preciso criar já novos fogos para habitação de longa duração, no eixo urbano, com enfoque nas áreas onde a especulação imobiliária é maior, fazendo até de alguma forma (e mal dito) concerrência à iniciativa privada. Não queremos que a Ericeira seja Óbidos, pois não? Perder os moradores tradicionais de uma zona vai descaracterizá-la e deitar por terra movimentos associativos, tradições enraizadas, hábitos padronizados. É preciso dar aos locais a oportunidade de ficarem onde sempre estiveram e, só assim, contribuir para o equilíbrio e coesão social. É preciso permitir que os jovens se autonomizem. É preciso assegurar que as famílias com crianças a encargo possam permanecer na área geográfica onde têm as suas redes de apoio, assim como agregados compostos exclusivamente por idosos. Para que tudo isto possa acontecer, é preciso eliminar a linha vermelha: o limite a partir do qual as casas estão tão caras que estas pessoas não lhes conseguem aceder.
Para que a mulher com pouco mais de 30 possa dizer, numa outra manhã, que a mãe já não tem que a aturar.
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Excelente e muito oportuno. Parabéns.