Entrevista | Lourenço Carvalho – Palácio dos Marqueses na Vila Velha, Mafra (Universidade dos Valores)

Lourenço Carvalho é Vice-Presidente do Instituto Luso-Ilírio para o Desenvolvimento Humano (ILIDH) entidade que utilizando fundos próprios, fundos europeus e apoios de fundações e entidades privadas fez a reabilitação do Palácio dos Marqueses de Ponte de Lima, na Vila Velha – Mafra, onde está instalada a Universidade dos Valores (UV)

 

Jornal de Mafra (JM) – No que diz respeito à Universidade dos Valores (UV), publicamente, tudo parece ser começado, de alguma forma, a 22 de janeiro de 2010 com um seminário na sala Diana do Palácio Nacional de Mafra. Como é que avalia a evolução deste projeto que denominaram Universidade dos Valores?
Lourenço Carvalho (LC) –
Não. Nessa data ocorreu uma conferência sobre inovação curricular e educação para os valores, destinado a professores de todo o país, relacionada com educação para valores e literacia social. Ou seja, referindo-se fundamentalmente ao que vem de trás, ao programa Led on Values que foi implantado em todas as escolas básicas do concelho e que acabou por levar a que nos fixássemos aqui com o projeto atual.

JM – Nessa altura já tinham trabalho desenvolvido no concelho?
LC – Nessa altura, já tínhamos desenvolvido trabalho ao nível das escolas, mas ainda sem nenhuma perspetiva de recuperação deste espaço [refere-se ao Palácio dos Marqueses de Ponde de Lima, local onde ocorreu a entrevista], espaço que nem sequer conhecíamos. Na altura dedicávamos-nos a um projeto municipal de educação para valores, que estava a ser desenvolvido no ensino básico, projeto esse, que acabaria por contribuir para despertar o interesse de Mafra em fixar aqui mais projetos nossos.

JM – Há quanto tempo desenvolvem aqui as vossas atividades?
LC –
A Universidade dos Valores começa a funcionar aqui desde 2016, ano em que o espaço foi inaugurado. No entanto, nós já estávamos no concelho desde 2007, com a nossa associação, o Instituto Luso-Ilírio para o Desenvolvimento Humano, embora sem um espaço físico definido, desenvolvendo sobretudo projetos de assessoria pedagógica às escolas, atividade que mantivemos até 2011, ano em que estabelecemos o protocolo. Até 2016 a obra de reabilitação é concretizada e a partir daí o trabalho passa a ser aqui desenvolvido.

Este continua a ser um enigma por desvendar, têm vindo aqui escolas de todo o país e visitas das escolas de Mafra, quase zero

JM – Assim sendo, desde 2016 já alcançaram seguramente todas as escolas do concelho. Como é que avalia a aceitação do projeto pelas escolas?
LC – Tivemos vários contactos diretos com as direções das escolas e com professores, com quem, anteriormente, já tínhamos projetos de colaboração. No entanto, o resultado não foi aquele que esperávamos. Com a exceção honrosa do Jardim de Infância de Mafra e da EB1 da Enxara do Bispo, nunca tivemos cá a visita de outras escolas do concelho de Mafra, mesmo sendo nós membros do Conselho Consultivo Eco-Escolas, em cujas reuniões perguntamos quando é que as escolas contam visitar a UV. As respostas acabam por ficar sempre no ar. Os professores afirmam que a direção não passa a informação…que não sabiam bem que tipo de atividades desenvolvíamos… ou o que é que podiam fazer aqui. Na verdade, não se pode assacar toda a responsabilidade às direções, os próprios professores poderiam ter essa iniciativa. Este continua a ser um enigma por desvendar, têm vindo aqui escolas de todo o país e visitas das escolas de Mafra, quase zero.

JM – Quantas escolas já passaram por aqui ?
LC – Em termos gerais, já teremos tido contacto com umas 850 escolas, sejam contactos formativos, ou visitas. O número de visitas rondará os 4 000 alunos, presencialmente aqui em Mafra, oriundos de várias dezenas de escolas, de norte a sul do país, literalmente de Bragança a Vila Real de Santo António.

JM – Que valores em concreto são alvo do programa Led on Values?
LC –
São os valores que transcendem culturas, ideologias ou religiões, que permanecem ao longo da Historia, independentemente da geografia, das pessoas e das sociedades. São valores consensuais, que não gostamos de listar, até porque, por vezes, as pessoas dão nomes diferentes aos mesmos significados. São os valores que nos permitem entender que temos mais coisas que nos unem, do que aquelas que nos separam. De qualquer modo, poderíamos referir alguns, como a liberdade, a compaixão, a gratidão, o amor, a amizade ou a confiança. Valores que procuramos que as pessoas reconheçam, através de atividades práticas, e de um conhecimento experiencial. A Universidade dos Valores não pretende ensinar valores, pretende sim, criar condições para que as pessoas os experimentem. 

JM – Que relações concretas de colaboração mantém atualmente a UV com entidades internacionais ligadas às áreas da cultura e do ensino?
LC – Temos ligações protocoladas com a UNESCO, somos um dos cerca de 20 centros UNESCO do país. Aquando da nossa abertura em 2016, a UNESCO contactou-nos, visitou-nos e convidou-nos para fazermos parte dessa rede de centros. Colaboramos regularmente com instituições ligadas à Comissão Europeia (CE) e ao Conselho da Europa.

Quanto mais escolarizado e rico é o português, menos valor atribui à justiça, à honra ou à solidariedade

JM – Em que é que se consubstanciam essas parcerias?
LC –
Relativamente à Comissão Europeia, essa colaboração passa sobretudo por projetos europeus em que a CE surge sobretudo como parceiro financiador. Muitos dos recursos pedagógicos que desenvolvemos, beneficiaram de verbas relacionadas com projetos europeus na área da educação. Citaria o programa Erasmus+, o programa Lifelong Learning, isto para além de outro tipo de colaborações, mais de caráter institucional, como é o caso, por exemplo, do Centro Jacques Delors.

JM – Para além dos aspetos relacionados com o financiamento, em que é que essas colaborações se repercutem em termos práticos?
LC – 
Por exemplo, no caso do Programa Erasmus+, contemplámos duas vertentes. Uma delas relacionada com o desenvolvimento de conteúdos, alguns dos jogos interativos foram desenvolvidos com base nesse projecto, e outra vertente, que implicou trazer cá professores e alunos, especialistas de educação, diretores de escolas, dirigentes de ministérios da educação de vários países, que em 4 ciclos diferentes, passaram aqui uma semana para conhecer esta experiência, de forma a multiplica-la além fronteiras.

JM – Li uma entrevista sua de 2014, em que defendia a ideia, de que “quanto mais escolarizado e rico é o português, menos valor atribui à justiça, à honra ou à solidariedade”. Mantém esta opinião?
LC – Sim. Até porque essa opinião resulta de um estudo estatístico, quantitativo. Essa ideia é uma das conclusões do meu doutoramento, tendo resultado da análise que fiz a partir de um inquérito estatisticamente significativo. À medida que aumentavam os níveis de escolaridade e os níveis de rendimento, baixavam os níveis de preocupação com certos valores, nomeadamente, com os valores democráticos e os valores interpessoais. De resto, a nossa vivência mostra-nos isso mesmo, acabando por nos confirmar a justeza daquela ideia. Se lermos um filósofo como Agostinho da Silva, já lá vemos expressa as mesma ideia, a ideia de que quanto mais escola temos, mais se perdem determinados valores que são fundamentais para sermos gente. Infelizmente, suspeito que se fizesse agora um novo inquérito, iria chegar às mesmas conclusões.

O presidente [Ministro dos Santos] sugere então que fixemos o projeto em Mafra. Passado algum tempo, é ele próprio que nos propõe como espaço, o Palácio dos Marqueses de Ponte de Lima

JM – Como é se iniciam os contactos que haveriam de levar ao atual contrato de comodato com a CMM? Parece ter havido um apoio especial por parte de Paula Cordas.
LC –
Nós não tínhamos nenhuma ligação a Mafra. Estabelecemos-nos em Mafra como família, saindo de Lisboa e de Cascais para uma zona mais rural, mais tranquila. Fixamos-nos no Livramento, onde criámos um espaço especialmente dedicado à criação do Instituto Luso-Ilírio para o Desenvolvimento Humano, a partir do qual começámos a trabalhar em projetos de desenvolvimento pedagógico, sempre com foco na educação para os valores e desenvolvendo, então, o nosso trabalho, sobretudo a nível internacional. Criados os materiais pedagógicos, necessitávamos de grupos piloto para os testar. Como estávamos em Mafra, contactámos instituições do concelho, nomeadamente, as escolas e a câmara, para avaliar se haveria interesse em integrarem turmas nos nossos projetos piloto. Esse interesse foi manifesto, sendo que a Drª Paula Cordas era nessa altura a Diretora do departamento Sócio-cultural, com o pelouro da cultura e da educação, tendo sido, por essa via, a nossa interlocutora. Não a conhecíamos antes, foi o primeiro contacto que tivemos. Surge então a ideia, da parte da câmara, de alargar esses projetos piloto, dando origem a uma proposta nossa, no sentido da criação de um projeto municipal para o ensino básico, com base no programa Led on Values, que tinha âmbito nacional, proposta que a câmara aceita e que é posta em execução. 

JM – Como é que surge a ideia de se instalarem aqui no Palácio dos Marqueses, então, um edifício em ruínas?
LC –
A proposta do projeto surge de uma conversa informal com o então presidente da câmara José Ministro dos Santos, que nos pergunta o que é que se poderia seguir ao Programa Led on Values. Respondemos referindo a necessidade de dispor de um espaço que se pudesse constituir num centro de investigação e desenvolvimento, ao qual os professores e as comunidades educativas pudessem recorrer nas ações de formação do programa. O presidente sugere então que fixemos o projeto em Mafra. Passado algum tempo, é ele próprio que nos propõe como espaço, o Palácio dos Marqueses de Ponte de Lima.

JM – Foi a única localização que sugeriu?
LC –
Creio que sugeriu também um espaço perto de onde está atualmente o McDonalds. Para nós fazia sentido instalar o projeto num espaço fora do centro da vila, pensámos num pré-fabricado, com um espaço à volta onde se pudesse fazer um jardim. Chegámos a pensar como local ideal, um espaço ao fundo do Parque Desportivo Municipal, tinha ali as escolas e tinha um parque, não imaginando sequer que por detrás dos eucaliptos estava a ruína do Palácio dos Marqueses. Quando vimos o estado do palácio, vimos que tipo de “presente” era aquele. Por outro lado, tinha a localização que nos interessava e vimos isto numa perspetiva de futuro, de um espaço de cultura, de educação, de ambiente e de desporto, que nessa perspetiva, tinha o ADN do nosso projeto. Foi aí que cometemos a loucura de aceitar e de nos comprometermos a recuperar um espaço que estava em ruína quase total.

Terá havido muita pilhagem durante as muitas décadas de abandono a que o palácio foi sujeito

JM – Nunca se colocou a hipótese de ser a câmara a fazer a reabilitação?
LC – Não. A câmara já tinha procurado instituições que fizessem a reabilitação, mas sem sucesso. Falava-se num hotel de charme, mas que não chegou a avançar, e os entraves colocados pelo então IGESPAR (antecessor da atual DGPC) também não facilitavam as coisas.

JM – O IGESPAR criou muitas dificuldades?
LC –
Uma das parcerias que fizemos na recuperação foi com a Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, em particular, com o mestrado de reabilitação, com o Professor José Aguiar, que nos ajudou nesse aspeto, até porque nós acabámos por fazer as obras por administração direta, o que nos obrigou a estudar e a aprender como é que as coisas funcionavam. Na verdade, acabámos por ter ali um bom mediador com o IGESPAR, apesar de que, no inicio, eles queriam que fizéssemos uma sondagem arqueológica em toda a propriedade, algo que custaria centenas de milhares de euros, sendo completamente inviável. Chegámos então a um acordo, uma vez que não tínhamos intenção de construir nada ou de ir mexer no subsolo.

JM – Chegaram a encontrar alguns achados arqueológicos?
Lc –
Nunca encontrámos nada, nem no interior, nem no exterior, dando-nos a indicação de que terá havido muita pilhagem durante as muitas décadas de abandono a que o palácio foi sujeito.

JM – O comodato é assinado em 2010. Em 2010 era primeiro ministro José Sócrates e a Ministra da Educação era Isabel Alçada. Que interesse sentiu da equipa que então estava à frente do ME?
LC –
Nós convidámos o Ministério da Educação (ME), através da DGIDC (Direção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular, a atual DGE) para participar num grupo de peritos que acompanhavam e monitorizavam o desenvolvimento pedagógico que aqui se fazia. Este interesse do ME tem-se mantido sempre.

[sobre a Kuptim] Achámos que devia haver um spin off dessa atividade para uma empresa privada. Ela acaba por ficar sediada no Palácio Nacional de Mafra, porque era lá que estávamos instalados

JM – Nesse mesmo ano funda a sua empresa, a Kuptim – Soluções de Aprendizagem, LDA, que se mantém ativa e que embora sendo uma empresa privada, teve até 2019, a sua sede no Palácio Nacional de Mafra (PNM)?
LC –
Essa empresa foi criada numa altura em que nós estávamos instalados no PNM, e uma das valências, quer do Instituto, quer da Universidade dos Valores, era também incubar iniciativas de natureza vária, cultural, educativa e empresarial, como se pode ler nos nossos estatutos, para incentivar o desenvolvimento de novas atividades. Aconteceu que houve uma série de atividades que o instituto desenvolvia, sobretudo ao nível do desenvolvimento pedagógico, tecnológico e educativo, que a certa altura, já não estavam totalmente no centro do objeto do Instituto. Assim, achámos que devia haver um spin off dessa atividade para uma empresa privada. Ela acaba por ficar sediada no Palácio Nacional de Mafra, porque era lá que estávamos instalados.

JM – Deverá ser caso único, uma empresa privada que tem por sede social um Palácio Nacional, não será?
LC –
Não sei, nem nunca dei a isso um valor extraordinário. Talvez quem olhe de fora para isso, ache mais interessante, do que nós, a quem isso não causa muita estranheza. Como na altura tínhamos um espaço aberto, foi essa morada que utilizámos.

JM – O contrato é concedido à Kuptim ou ao Instituto Luso-Ilírio para o Desenvolvimento Humano?
LC –
Nos seus estatutos e nos objetivos do protocolo de comodato com a câmara, o Instituto tem também a incubação de empresas e de atividades no seu seio. O Instituto foi dar apoio à constituição dessa empresa.

JM – De uma empresa que é vossa?
LC –
Exatamente.

Somos uma instituição privada, numa iniciativa familiar

JM – Mas em abril de 2014 o ILIDH terá recebido um ofício da CMM, pedindo-lhe para libertar o espaço que ocupava no Palácio de Mafra (já a pensar nas futuras instalações do Museu da Música), é assim?
LC – A partir do momento em que esta ala do Palácio dos Marqueses ficou recuperada, tomámos logo a iniciativa de sair do Palácio Nacional de Mafra.

JM – Mas não foi só no final de 2019, que abandonaram as instalações do Palácio Nacional?
LC –
Mas está a referir-se à Kuptim? É que, uma coisa é nós termos um local que é uma mera morada, e não estamos fisicamente lá, outra é termos uma morada onde estamos fisicamente todos os dias. A partir do momento em que tivemos as condições mínimas para trabalhar, e quando digo mínimas, eram mesmo mínimas, passámos a estar aqui. 

JM – Porque é que nesse momento, não passaram para aqui a sede da Kuptim?
LC –
Na prática, ela continuou a funcionar aqui, só que nós já tínhamos a perspectiva da reversão do efeito de spin off , mais cedo ou mais tarde, embora não pensássemos que fosse demorar tanto. Achámos, portanto, que seria um desperdício de procedimentos e de despesa, estar a alterar a sede social para aqui, quando já perspetivávamos uma fusão no futuro próximo, tendo sido o que aconteceu em 2019.

JM – Como é que se justificam os contratos de prestação de serviços assinados em janeiro de 2015, a favor de Lourenço Carvalho e de Eva Carvalho, no valor, respetivamente, de 21 mil e de 16.800 euros, assinados por João Manuel Alves de Carvalho?
LC – Esses recebimentos foram feitos, enquanto investigadores e enquanto prestadores de serviços, e não na atividade geral do Instituto, já que enquanto membros dos órgãos sociais do Instituto nunca recebemos. Quando tínhamos projetos a decorrer, nomeadamente, projetos europeus em que éramos coordenadores, ou éramos investigadores, esse trabalho era remunerado pelo Instituto, o qual era o promotor ou o parceiro nesse projeto. Estes contratos remunerados eram auditados pelas instituições fossem elas nacionais ou europeias.

JM – Quem é João Manuel Alves de Carvalho?
LC – É o meu pai e é membro do Conselho de Administração do Instituto. Somos uma instituição privada, numa iniciativa familiar.

JM – O ILIDH fez 4 contratos públicos todos com o Instituto Português do Desporto e da Juventide (IPDJ ) e a KUPTIM fez 2 contratos com o IPDJ e 4 com o próprio ILIDH, como é que se explica este roulement de contratos?
LC – A nossa ligação ao IPDJ faz-se por via do Plano Nacional de Ética no Desporto (PNED). Neste quadro, o IPDJ pede-nos apoio, por esta área ser mais da nossa especialidade. Há uma série de projetos que não se limitam a essas contratações, pois nós integrámos o IPDJ e o PNED em parcerias de projetos nacionais e europeus, que visavam a criação de publicações e a ministração de formação. Esses contratos tinham a ver, sobretudo com ações de formação e sensibilização para a ética no desporto.

JM – O que é que justifica a distribuição dos contratos pelo ILIDH e pela KUPTIM?
LC –
Como referi, isso relacionou-se com a natureza de alguns trabalhos que saiam um pouco do âmbito do Instituto, já que a KUPTIM era uma empresa sobretudo de desenvolvimento tecnológico. Assim, quando foi preciso desenvolver uma plataforma de formação, mas tecnológica, fazia mais sentido ser a KUPTIM do que o IILIDH.

JM – Já sabemos que a reabilitação do palácio custou menos do que o que estava previsto, que eram 1 851 520,00€”. Quanto é que custou na realidade?
LC –
Não lhe sei dizer exatamente, mas devemos ter ficado meio milhão de euros abaixo da estimativa. Em breve saberemos, uma vez que estamos a fazer os 4 anos de atividade, e temos o compromisso protocolado com a câmara, de fazer um relatório a cada 4 anos de atividade.

JM – Ora aqui está algo que raramente se ouve, os custos aqui não derraparam?
LC –
É verdade. Normalmente é ao contrário, as derrapagens são habitualmente para o outro lado.

O financiamento da reabilitação é uma combinação de várias fontes de financiamento

JM – Sendo que aqui, o financiamento não foi público, certo?
LC –
O financiamento da reabilitação é uma combinação de várias fontes de financiamento. A reabilitação coincidiu com o estalar da crise económica e financeira, e de repente, o mecanismo financeiro da CE que financiava a recuperação de património cultural material, deixou de estar disponível. Estive em Oslo nessa altura, em contactos com a “DGPC” norueguesa, a preparar uma candidatura que deveria ocorrer em março ou em abril do ano seguinte, a qual permitiria financiar a empreitada, se tivéssemos a mérito de ganhar esse concurso. Entretanto, em fevereiro cai o governo de José Sócrates e os financiamentos para o património, para o ambiente e para várias áreas, acabam por ser suspensos. Com a entrada do novo governo e em função das negociações que se seguem com a troika, esses fundos deixam de estar afetos à sociedade em concurso e passam a ficar afetos aos ministérios. A partir desse momento deixamos de ter onde nos candidatar, obrigando-nos a procurar alternativas. O dinheiro que então conseguimos foi sobretudo privado, quer nosso, do Instituto, na altura era urgente refazer o telhado para evitar que no inverno seguinte a estrutura caísse, quer de outras instituições, como a Fundação PT e a Fundação Calouste Gulbenkian, o ILIDH e a KUPTIM. Aproveitámos também os mecanismos públicos de financiamento relacionados com o empregos que criámos durante a reabilitação, nomeadamente ao nível da construção civil.

Todas as receitas são absorvidas pelo projeto, nestes meses de inverno, as receitas nem são suficientes para pagar os salários das pessoas que trabalham cá [] Mesmo com a pousada, é extremamente difícil atingir o break even mensal

JM – Ainda em termos de financiamento, a vossa pousada está à venda nas plataformas que vendem alojamentos. Qual é a sua taxa de ocupação e como é que ela se distribui entre turistas e escolas? Representa receitas anuais de que ordem?
LC –
Foi uma das valências previstas desde o início, na perspetiva de uma sustentabilidade financeira futura. Assim, dedicámos cerca de 20 por cento do espaço a quartos para alojamento local. Quanto à taxa média de ocupação, infelizmente é ainda muito baixa, andará também pelos 20 por cento, se tanto, e com a entrada em vigor da taxa turística municipal, reduziu-se ainda mais. De resto, todas as receitas são absorvidas pelo projeto, nestes meses de inverno, as receitas nem são suficientes para pagar os salários das pessoas que trabalham cá, uma vez que nós, enquanto dirigentes, nem recebemos salários. Mesmo com a pousada, é extremamente difícil atingir o break even mensal.

JM – Que outras receitas contribuem atualmente para o orçamento da UV?
LC – Para além das receitas da pousada, que constituirão uns 60 por cento das receitas, nós mantemos alguns contratos de consultadoria que também contribuem para as receitas.

O conhecimento não se resume a um todo estruturado e técnico, que vem dos livros das ciências duras, há também uma linguagem, um conhecimento, que vem da experiência subjetiva de cada um e do conhecimento que daí resulte, do ponto de vista mais filosófico

JM – Quando os entrevistámos em 2015, já os questionávamos acerca de um certo pendor religioso e/ou místico, talvez zen, que nos pareceu transparecer do discurso da Universidade dos Valores. Não acham que há alguma falta de clareza na linguagem que utilizam para se apresentarem?
LC – Isso, só quem nos lê é que pode dizer. Nós tentamos utilizar uma linguagem desprendida de dogmas, sejam os mais locais ou os mais globais, uma linguagem o mais universal possível, porque acreditamos que o conhecimento não pode vir só de um setor da sociedade, da tradição ou da ideologia, sobretudo num tempo em que temos acesso a muito mais conhecimento e a muito mais cultura, devemos estar abertos a essa linguagem. O que pode também ser parte da nossa intenção, é a ideia de que o conhecimento não se resume a um todo estruturado e técnico, que vem dos livros das ciências duras, há também uma linguagem, um conhecimento, que vem da experiência subjetiva de cada um e do conhecimento que daí resulte, do ponto de vista mais filosófico.

JM – Como é que avalia a relação da Universidade dos Valores com a imprensa local?
LC – O que é que eu conheço da imprensa local? Conheço o Jornal de Mafra, que terá sido o que cá esteve mais vezes. O Carrilhão, que uma vez nos perguntou se uma determinada fotografia era do Palácio dos Marqueses, nós respondemos que não, que era de outro edifício qualquer, e este contacto não teve seguimento. Mais recentemente, no seguimento do esclarecimento que fizemos para o jornal O Ericeira, a diretora de O Carrilhão disse-nos que gostava de nos vir conhecer. Com o jornal O Ericeira, o primeiro contacto que tivemos foi como visados de um artigo de primeira página, em 2012, artigo que nos caiu muito mal, já que foi completamente despropositado e falso na maioria das informações que transmitiu, e foi este o contacto que tivemos com a comunicação social local. Por ter sido o primeiro e por ter sido tão despropositado, ter-nos-à influenciado a ficarmos um pouco mais passivos em relação à comunicação social local. De resto, na altura, nem respondemos, mas estamos arrependidos, pensamos que devíamos ter respondido. Em 2012 chegámos a preparar um direito de resposta a O Ericeira, cujo texto tinha sido combinado com a Câmara Municipal de Mafra, que aceitou fazê-lo, uma vez que a câmara também era visada, no entanto, quando nos preparávamos para enviar o texto do direito de resposta, a Câmara Municipal de Mafra recuou. Confesso que não gostei, e decidimos então não avançar sozinhos.

JM – Num comunicado que emitiram recentemente, a propósito de outro incidente envolvendo o mesmo órgão de comunicação social da Ericeira, anunciaram a possibilidade de avançar com uma ação judicial contra ele. Avançaram efetivamente por essa via?
LC – Não avançámos nesse sentido, avançámos sim noutro sentido, de natureza disciplinar, do qual não temos ainda resultados.

JM – Anunciaram em comunicado ter ocorrido uma quebra da confidencialidade da correspondência entre a Universidade dos Valores e o órgão de comunicação social a que se tem vindo a referir. Essa quebra de confidencialidade ocorreu mesmo?
LC – O que é real, é que a correspondência entre a Universidade dos Valores através do Instituto, e a direção do jornal, foi entregue a um cronista, que tanto era apresentado como muito independente da direção do jornal, como era também apresentado como representante do jornal. Consideramos o facto de termos visto o conteúdo dos nossos emails com a direção do jornal, citado num artigo de opinião, da autoria de um cronista, como uma traição da confiança e uma quebra de confidencialidade.

Neste mandato, até acho que houve mais apoio do que no mandato anterior. O mérito é mesmo do vereador da área da cultura e da educação, que se aproximou de nós, que manifestou interesse no nosso trabalho e desenvolveu uma série de iniciativas, até de interceção com atividades da câmara

JM – No final de comunicado a que temos vindo a aludir, transparece, de algum modo, a ideia que a Câmara de Mafra poderá ter deixado de apoiar a Universidade dos Valores. Qual é o projeto camarário que “que irá, muito em breve, destruir alguns dos mais antigos vestígios das suas fundações pré-medievais, assim como separar irremediavelmente este Palácio dos seus jardins históricos com uma via automóvel de grandes dimensões muito dispendiosa e sem qualquer fundamento ou justificação”?.
LC – Não se trata de falta de apoio. Não posso dizer que tenha havido falta de apoio. Neste mandato, até acho que houve mais apoio do que no mandato anterior. O mérito é mesmo do vereador da área da cultura e da educação, que se aproximou de nós, que manifestou interesse no nosso trabalho e desenvolveu uma série de iniciativas, até de interceção com atividades da câmara. Relativamente a essa questão específica, mencionada no comunicado, representa uma preocupação nossa. 

JMJá em fevereiro de 2014, numa sessão da Assembleia Municipal, uma deputada da oposição perguntou ao presidente Hélder Silva, pelo andamento das obras da envolvente à Universidade dos Valores. Quer contar-nos a história das obras na envolvente à UV?
LC –
Foi uma boa pergunta essa, a da senhora deputada, na altura em que ocorreu, até porque, será por essa altura que há de facto um projeto da envolvente, aprovado pela DGPC, até pelo facto de envolver a demolição do muro da Rua do Castelo e daquela ruína que ali estava. Nós tivemos uma participação ativa na elaboração desse projeto que a câmara municipal submeteu à DGPC, aliás, também com a colaboração da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Assim, desde essa altura que era expectável que se fizessem as obras da envolvente. Desde que Hélder Silva assumiu a presidência da câmara de Mafra foi-nos garantido que esses trabalhos iam ser feitos imediatamente, até porque havia lama por todo o lado, havia a ruína e o muro estava a cair. O projeto da envolvente compreendia um miradouro, que dava para o parque desportivo, onde agora será construída uma estrada, e um parque de estacionamento à frente. Assim, desde 2014 que nos encontramos, mês após mês, à espera que algo aconteça na envolvente ao Palácio dos Marqueses. Foi-nos dito que a obra só ocorreria depois da construção do novo edifício do centro de saúde, nas iria ser limpo e arranjado o espaço. Mas isto nunca foi feito, embora nós tenhamos feito várias insistências.

Até ao fim de março de 2019 estará feito [data apontada para o fim das obras da envolvente ao Palácio dos Marqueses

Feito o centro de saúde, foi-nos dito que “desta vez é que é, vamos fazer a intervenção em toda a Rua do Castelo“. Nessa altura, vendo que as coisas não avançavam, percebi que não havia infraestruturas, nem passeios, nem lancis, ou seja, parava tudo a 20 metros do Palácio dos Marqueses. Perguntei então se era mesmo para avançar, e a resposta que me dão é afirmativa, “até ao fim de março de 2019 estará feito“. Quem tem estado a trabalhar aqui na envolvente é a equipa do senhor Ricardo Batalha, pelo menos, até terem parado a 20 metros daqui. Mesmo dentro da câmara havia pessoas que acreditavam na palavra, quer do presidente, quer do engenheiro António Fernandes, que o confirmaram. No entanto, passou março, passou maio, junho… em junho, já depois da inauguração do centro de saúde, tudo estava parado e era já o vereador da Cultura e da Educação que perguntava internamente, “então mas como é que é? Dizem que vão fazer as obras eu atravesso-me, digamos assim, e a obra não está feita?“. Chegou uma certa altura em que o vereador responsabilizou o engenheiro António Fernandes, no sentido de ser ele a dizer aquilo que seria ou não seria feito, embora este, mesmo em junho, continuasse a dizer que os passeios e a iluminação iam avançar. Eu já conhecia a intenção deste presidente, de fazer passar aqui uma via, mas no momento em que abateram as árvores que estavam aqui, apercebi-me de que ia mesmo acontecer.

Penso que a solução ambientalmente e culturalmente mais adequada poderia passar por um passeio pedonal, ou por uma ciclovia, por dentro do parque

JM – Essa via ligará o quê, a quê?
LC – 
Passa ao lado do Palácio dos Marqueses, na encosta, no local onde cortaram os eucaliptos e ligará a Rua do Castelo até à porta da ETAR. É construída com o argumento de permitir aos moradores da Quinta de Santa Bárbara acederem mais facilmente ao centro da vila e para que os peões possam aceder com mais facilidade ao cemitério. Esta via não se pode chegar muito para baixo, porque há uma linha de água, e portanto chega-se o mais para cima possível e apresenta desníveis de 10 ou 15 metros, que terá de vencer. Penso que a solução ambientalmente e culturalmente mais adequada poderia passar por um passeio pedonal, ou por uma ciclovia, por dentro do parque. Quando abateram as árvores, e apesar do secretismo ter sido sempre grande, apercebi-me que iam aqui fazer uma via, então reuni-me com o presidente e com o vereador da cultura, sendo então que o presidente me apresenta o projeto da referida via, mas enquanto uma ideia em aberto e em discussão. Disse ao presidente que, na nossa opinião, nada justifica a construção de uma via que irá “decapitar” o património mais antigo da vila de Mafra, num momento em que, por toda a Europa se afastam vias e estradas, dos centros históricos. Isto é a Vila Velha. É aqui que nasce Mafra.

JM – Esta obra está parada desde quando?
LC –
Desde que foi feito o centro de saúde, que a câmara tem utilizado este espaço como um estaleiro de obras, de outras obras. Ainda hoje passou aqui uma carrinha a carregar brita e pedras da calçada que estão aqui depositadas. Sob o ponto de vista contratual, nós não nos podemos opor à construção da estrada, mas há direitos que temos, desde a delimitação da concessão, que também está a ser posta em causa pelo departamento de obras da câmara, até à integração da Universidade dos Valores com o parque desportivo, que está prevista contratualmente. Há ali um forno de cal degradado, importantíssimo, sob o ponto de vista do património municipal, há ali muros que terão, provavelmente, mais de mil anos, há ali uma envolvente natural e cultural que merece ser recuperada e integrada no parque desportivo, e era esse o projeto inicial. Cheguei a perguntar pelo procedimento de contratação pública, saber quem é que vai executar a obra e onde é que está o processo de execução, mas nunca me responderam.

JM – Quais são os planos para o futuro da Universidade dos Valores? Há planos que visem um maior envolvimento com a comunidade local e que simultaneamente possam contribuir para minorar uma certa endogamia cultural que vai grassando pelo concelho?
LC – O centro da nossa atividade, onde concentramos as nossos esforços, consiste em trazer à Universidade dos valores, em Mafra, grupos de jovens estudantes, mas também famílias e outros grupos, por exemplo, de universidades sénior, acabando mesmo por validar a transversalidade do interesse que os nossos conteúdos despertam e dando-lhes acesso aos nossos recursos pedagógicos. Tínhamos a expetativa de que o primeiro impacto fosse mais local, evoluindo depois para um nível regional, nacional e internacional, mas ocorreu exatamente o contrário. Começamos por ter mais impacto a nível internacional, depois evoluímos para o nível nacional e o impacto local foi muito reduzido. O impacto regional é significativo, somos visitados por muitas escolas da região da Grande Lisboa. Para o futuro, pretendemos consolidar o trabalho que temos vindo a desenvolver, pretendemos voltar a receber escolas que já nos visitaram, ou seja, os professores continuam a visitar-nos e a trazer novas turmas. Pretendemos também dar um contributo tangível a esta estratégia nacional da educação para a cidadania, trabalhando com o Ministério da Educação, em particular com a Direção geral da Educação (DGE), dando um maior acesso às escolas, em consonância com os coordenadores para a cidadania, nas escolas. Em 2020 estaremos, pois, particularmente concentrados nessa parceria, alargando o alcance às escolas através do protocolo com a DGE.

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