Entrevista | Abel Chaves – Carrilhanista do Palácio Nacional de Mafra

Jornal de Mafra (JM) – Como é que se iniciou a sua relação com a nobre arte da música, começou pelo piano?
Abel Chaves (A.C.) – É curioso, porque o carrilhão é o meu primeiro instrumento de teclado. Teremos de recuar a 1986, tinha então 14 anos, quando foi feito o anterior restauro dos carrilhões, de resto, muito falado na comunicação social, sendo nessa altura que o meu pai, sempre muito presente na minha educação musical, me entusiasmou para um instrumento “que toca sinos”, era o carrilhão. Na altura realizou-se um pequeno curso de iniciação ao carrilhão, que tinha por objetivo selecionar um candidato a carrilhanista profissional.

JM – Mas nessa altura já tinha alguns conhecimentos a nível musical?
A.C. – Sim, embora o meu instrumento no conservatório fosse o trombone. Mas, como dizia, creio que se pretendia encontrar alguém que pudesse dedicar-se profissionalmente ao então recuperado carrilhão de Mafra. A verdade é que, naquele curso, ministrado no Palácio da Ajuda por dois professores belgas, fui eu o escolhido. Foi-me então atribuída uma bolsa de estudo, ao abrigo de um acordo luso-flamengo que me levou de bagagens aviadas para Bruxelas, tinha eu uns 15 anos. Foi uma experiência incrível, ver-me sozinho na Bélgica, com aquela idade, aprendi muito, a todos os níveis. Fiz o curso em 3 anos, com alta distinção, um curso que normalmente lavaria 7 ou 8 anos, sendo que, para isso muito contribuiu o facto de estar lá só para estudar, e o facto de ter consciência de que estava ali a representar o país. Agradeço muito aos meus pais a visão que tiveram, até porque foi a oportunidade de uma vida. Mais tarde, em 1993, foi  criado um lugar de carrilhanista, ocupado pelos três carrilhanistas que havia na altura, eu, o Chico Gato que conseguia fazer alguns concertos, e o Sr. José Rocha, que já faleceu. E assim firam as coisas até ao ano 2000, com um concerto que já era tradição, todos os domingos, às 4 horas da tarde. Depois começaram os problemas com o carrilhão, que em 2003 acabou por ser encerrado.

JM – Nesse momento a sua atividade começa então a passar por outros locais?
A.C. – Sim, em 2005 foi inaugurado o carrilhão da Igreja dos Pastorinhos, em Alverca, e em 2006 fui convidado para ser o carrilhanista titular do instrumento. Temos atualmente uma temporada de concertos durante todo o ano. Trata-se de um carrilhão muito diferente do de Mafra, pois não é um carrilhão histórico, mas sim, um instrumento contemporâneo.

JM – Creio que um dia, disse que Mafra tem o melhor e o pior carrilhão do mundo.
A.C. – [risos] Isso tem a ver com as duas torres. Um dos fundidores escolhidos foi Willelm Witlockx, de Antuérpia, que ficou encarregue dos sinos da Torre Sul. Ele era realmente o melhor que havia na altura, nomeadamente, no que se refere à afinação dos sinos. Já o Nicolas Levache, o outro fundidor, da Torre Norte, era um bom fundidor sim, mas de sinos das igrejas, que não precisam de ter um tom específico, e daí, o facto de a Torre Norte não ter um único sino afinado musicalmente.

JM – Mas há também afinações intermédias na ligação entre o teclado e os sinos, é assim?
A.C. – Exato, mas aí a afinação tem a ver com a dinâmica do toque e não com a altura do som. Em relação aos sinos da Torre Norte, agora já não há nada a fazer, no entanto, tratando-se de sinos históricos, não faria qualquer sentido derretê-los para fazer novos.

JM – Para além do aspeto histórico, o que é que distingue o carrilhão de Mafra dos outros carrilhões que conhece?
A.C. – Na Bélgica também há alguns carrilhões históricos, embora muitos deles tenham desaparecido durante as invasões napoleónicas. No fundo, é quase uma ironia poética, quando vemos algo, como um sino, que é feito para ser soado como sinal de alegria e de amor entre os povos, algo que pretende exorcizar o mal, acabar por servir para fazer canhões, que foi o destino de muitos dos carrilhões que então desapareceram. Os sinos de Mafra são muito pesados, e isso talvez tenha contribuído para não terem sido apeados, roubados e refundidos. O carrilhão de Mafra é considerado o melhor carrilhão do mundo. A afinação dos sinos graves é incrível, é delicioso tocar neste instrumento.

JM – Quantos carrilhões temos em Portugal?
A.C. – Não há um carrilhão igual a outro, e isso é uma riqueza. O carrilhão carateriza-se por ser um instrumento com um mínimo de 23 sinos afinados musicalmente, que tem de ser acionado por intermédio de um teclado caraterístico, com determinadas dimensões, com teclas de madeira, sendo acionado só manualmente. Por exemplo, para um especialista, chamar carrilhões aos instrumentos da Sé de Braga ou de Fátima, não constitui uma designação correta. Podem ser chamados jogos de sinos, mas não são realmente carrilhões. Assim, temos em Portugal cinco carrilhões, o de Mafra, e depois, só em 1995 é que surge o da Torre dos Clérigos, no Porto, em 2004 surge o carrilhão da Sé de Leiria, com 23 sinos, em 2005 surge o carrilhão da Igreja dos Pastorinhos, em Alverca, com 69 sinos, e finalmente, há 3 anos atrás, surge o carrilhão móvel de Constância.

JM – Isso, para quantos carrilhanistas a nível nacional?
A.C. – Oficialmente, com o curso de carrilhanistas, há três. Há também pessoas que tocam a nível amador.

JM – E há colaboração técnica entre os carrilhanistas portugueses?
A.C. – Sim, a ideia é que haja cada vez mais colaboração entre todos. Temos contactos com a Federação Mundial de carrilhão, que promove intercâmbios de concertos, e isso também promove a passagem de informação. De resto, o carrilhão sofreu algumas alterações, sobretudo mo século XX.  Era um instrumento muito pesado, era penoso tocar carrilhão, no início do século XX tocava-se em tronco nu, porque tudo era muito pesado, era um esforço brutal só para acionar o teclado. Hoje já não é assim, embora tudo se mantenha exclusivamente acústico e mecânico, sem acrescentos eletrónicos.

JM – Que diferenças sente quando toca carrilhão, relativamente, por exemplo, a tocar piano?
A.C. – A sensação que se tem, como músico, é especial. O carrilhão não se confina a um espaço físico. O carrilhanista, quando toca, não toca para uma sala, toca para uma sala celeste. No tempo de D. João V, o conceito de música ao ar livre era algo de muito especial, era algo de espetacular. O carrilhão era um pouco, como o conceito atual do Rock in Rio, mas transferido para aquele tempo, era musica para as massas. O próprio reportório é especial, num concerto podemos começar a ouvir Bach ou Mozart e acabarmos a ouvir Metallica, o Yesterday dos Beatles ou o Malhão Malhão. Nos Países Baixos, onde o carrilhão tem uma longa tradição, tornou-se  num instrumento popular .

O carrilhanista, quando toca, dá uma sensação de muita responsabilidade, pois é um instrumento com um poder enorme. Quando estou a tocar, toda a gente está a ouvir, e é um som que entra na vida das pessoas, que podem estar a lavar a loiça em casa ou a passear o cão na rua ou a tomar um chá na esplanada, por isso, este poder tem de ser usado com muito cuidado, porque é realmente poderoso e muito especial.

JM – Especificamente, que funções desempenha atualmente no quadro das obras de reabilitação dos carrilhões de Mafra?
A.C. – Sou consultor da DGPC para a obra. Sou o especialista no instrumento e tenho por função certificar-me de que, do ponto de vista do instrumentista, a instalação está a ser feita do modo como deve ser feita. Asseguro, pois, que a empreitada esteja de acordo com as normas de funcionamento do instrumento. Cada carrilhão tem uma montagem muito específica, com aspetos que muitas vezes são decididos na própria obra, tendo depois repercussão na qualidade final do som. A minha função passa por certificar-me de que a instalação resulta no toque certo do instrumento.

JM – Estamos, portanto, a falar com o futuro carrilhanista titular de Mafra.
A.C. –
Essa era a minha função até se suspenderem os concertos em 2003. Assim, se tudo correr pela via natural, haverá um prolongamento dessa função, mas não se sabe, ainda. Esse é obviamente o desejo que tenho, é algo que anseio bastante, desde logo, porque é algo para que treinei, quase desde que me conheço como pessoa. Penso que seria lógico dar continuidade aos concertos de carrilhão dominicais, não faria muito sentido fazer como acontece com os órgãos, e restringirem-se os concertos de carrilhão, a 12 concertos por ano, até porque os concertos de cada um destes instrumentos, implicam logísticas muito diferentes. Além disso, depois de se ter gasto o dinheiro que se gastou aqui, fazer menos do que um concerto semanal, parece-me manifestamente pouco. O Claustro Sul do palácio seria o local ideal para se ouvir um concerto de carrilhão, na perspetiva de ser lá montado um auditório onde as pessoas se poderiam sentar e ouvir os concertos, que não devem durar mais de uma hora e que poderão ser antecedidos por uma visita aos carrilhões.

JM – O concerto inaugural a mesmo 2 de fevereiro de 2020?
A.C. –
Sim, penso que isso já está decidido e posso adiantar que vai haver algumas surpresas. Acreditamos que vá ser uma coisa muito badalada, com surpresas muito interessantes, que contamos desvendar lá mais para a frente. Levantando um pouco o véu, mas não muito, recordo que o carrilhão da Torre Norte também é património… e isso talvez possa também fazer parte das surpresas que estamos a preparar.

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