Sabemos que “o Centro Europeu para Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) alerta para o “sério risco” de os hospitais na Europa ficarem saturados em breve por causa da covid-19, apesar de reconhecer melhor preparação e maiores probabilidades de sobrevivência”. Sabemos da grande pressão por que passaram e passam os sistemas de saúde do Estados Unidos e do Reino Unido, sabemos do dramatismo que a assistência hospitalar atingiu em Itália, França e Espanha.
Sabemos que a “Capacidade dos hospitais “não é ilimitada”, como alerta o presidente do conselho de administração do Santa Maria, sabemos que os “hospitais estimam que número de internados por covid-19 aumente até 60% numa semana”, sabemos que o Hospital da Guarda está em rotura, sabemos que os hospitais de Lisboa estão quase lotados, sabemos que olhamos para o país e vemos Portugal com mais 166 mortes e 10.947 novos casos de covid-19 nas últimas 24 horas.
A doença não era grave e a terapêutica não tinha segredos. A médica de família não teve dúvidas, tratava-se de um simples quisto sebáceo, embora exuberante no tamanho. Enviar o doente ao Hospital de Torres Vedras para remoção cirúrgica foi a acertada decisão. Trata-se de uma pequena cirurgia sob anestesia local, simples e rápida, em que o médico remove o quisto e limpa a área. E assim foi. Ambiente nada acolhedor, pouco simpático, gente de poucas palavras e de nenhumas respostas, mas o quisto foi retirado com mestria, a ferida foi limpa e o penso feito. Adeus e que não haja próxima, pensou o doente.
Cinco minutos depois da “alta”, o doente reentra na urgência do Hospital de Torres Vedras pelo seu próprio pé. Calças na mão e cara de zangado. O penso tenha sido mal executado (reação mágica d à má vontade dos profissionais?) e tinha-se soltado com meia dúzia de passos andados. A displicência do ato médico tinha-se refletido naquilo, um penso solto e uma ferida exposta a roçar nas calças. O doente teve de esperar uns 20 minutos para que alguém o ouvisse, o médico estava espojado num cadeirão da urgência e nem se mexeu. Muitos minutos depois, em absoluto silêncio, o penso foi recolocado, o doente saiu a correr e jurou (outra vez) que nunca mais voltaria ao Hospital de Torres Vedras.
Era uma idosa, muito idosa, com aquelas doenças estranhas que os idosos têm. Os reumatismos, os pés a arrastar pelo chão com o andar e a necessidade de se sentir amada a embater violentamente com o mau feitio de quem, numa vida muito longa, já perdera toda a paciência. O tratamento na urgência foi seco, frio, impessoal, era a urgência do Hospital de Torres Vedras, sempre com muito mais doentes do que aqueles que está preparada para receber, sempre rodeada daquela frieza que rodeava os hospitais… nos anos 60 do século passado. Passado todo aquele tempo que é sempre infindável para quem está a ser assistido numa urgência hospitalar, o acompanhante da velhinha é chamado a um gabinete médico, que embora fosse real, parecia improvisado. O médico estava de lado em relação a quem entrava no gabinete, orientado para o monitor de um computador onde se via um longo texto de tema indefinido. Nunca olhou para quem com ele falava e só tirou os olhos do monitor para entregar a receita, sempre sem olhar para a pessoa que o interpelava. Respostas finais, poucas e muito vagas, muito desinteressadas e desinteressantes, ainda hoje não se sabe se respondia ao texto que lia no monitor, ou se na realidade, nem se apercebeu que tinha uma pessoa à sua frente.
Doente não covid é transferido para o Hospital de Torres Vedras vindo do Hospital de Santa Maria, onde entrara por aspiração de alimentos para as vias respiratórias. A situação clínica é grave, agravada ainda pela idade e pelas dificuldades respiratórias de deglutição. O doente tem alta meia dúzia de horas após ter dado entrada no Hospital de Torres Vedras. Surpresa mesmo, o receituário de saída prescrito na urgência: amoxicilina + ácido clavulânico, 875 mg x 125 mg, em comprimidos – comprimidos com grandes dimensões e que apresentam grandes dificuldades de deglutição, mesmo em doentes jovens sem aquele tipo de problemas. O médico viu mesmo o doente? Apercebeu-se da idade do doente? Teve consciência do diagnóstico de entrada? O doente estava mesmo em condições de ter alta?
Urgência movimentada, mas não superlotada, sala de espera com meia dúzia de pessoas. A ambulância transporta um doente para a urgência, mas maca e doente ficam retidos no espaço de entrada da urgência, frente à porta automática que dá acesso o exterior. O doente, um politraumatizado, fica imobilizado naquele local porque o teste covid que fizera, era inconclusivo, ficando assim impedido de ser admitido na urgência. A situação prolonga-se por uns bons 15 minutos, tempo durante o qual, o acesso à urgência do hospital fica impedido. Do lado de fora, a discussão que ia do lado de dentro deixava quem assistia, com a sensação incómoda de que não havia ali procedimentos de rotina estandardizados. Com o acesso à urgência impedido, foi possível assistir a operações de triagem, em pé, no meio da sala de espera da urgência.
Ouvimos elogios aos serviços de internamento do Hospital de Torres Vedras e conhecemos casos de boa assistência na urgência, por parte de médicos do serviço de ortopedia, no entanto, são públicos os problemas, anteriores à pandemia, envolvendo a urgência de pediatria e a urgência geral do Hospital de Torres Vedras.
Sabemos que numa sociedade pouco solidária, numa sociedade onde uma boa parte da população sofre de iliteracia e onde os recursos de muitas famílias são limitados, tudo o que é gratuito é consumido sofregamente, mesmo quando o seu consumo é desnecessário. O consumo desenfreado e muitas vezes desapropriado dos serviços de saúde em urgência, comum antes da pandemia, muitas vezes, é certo, porque os serviços de medicina familiar não dão resposta atempada, colocou muita pressão sobre as urgências gerais, desqualificando-as.
Sabemos da falta de médicos e das dificuldades orçamentais do país. Sabemos da distância que vai dos serviços centrais dos ministérios e das (ARS)’s, aos cidadãos, como sabemos dos problemas de planeamento central e local, que levam as entidades públicas a só reagir no fim da linha.
Sabemos que em termos de organização e de economia de escala, se justifica a existência de organismos intermédios como o CHO (Centro Hospitalar do Oeste), mas não se pode utilizar serviços como estes para aumentar a distância entre os cidadãos e os serviços, não se pode utilizar serviços como estes, que não respondendo de manhã a órgãos de comunicação social (OCS) regionais, respondem à tarde, a agências de informação ou a OCS nacionais.
Sabemos de isto tudo, mas não compreendemos como não foi possível, com obras minimalistas, que fosse, não dotar desde há muito tempo, as instalações do serviço de urgência do Hospital de Torres Vedras, de um real circuito de acesso covid, devidamente separado do serviço geral. Como não foi possível, com obras minimalistas, que fosse, dotar, desde há muito tempo, as instalações do serviço de urgência do Hospital de Torres Vedras, de um centro de triagem eficaz. Como é que não foi possível, ao longo do tempo, avaliar continuamente o desempenho de funcionários, de todos os funcionários, médicos, enfermeiros e auxiliares, separando o trigo do joio – valerá mais ter ao serviço, por exemplo, um médico tecnicamente incompetente, ou desadaptado, ou ultrapassado em termos científicos, ou desinteressado, do que prescindir dos serviços desse profissional?
Finalmente, devemos chamar a atenção para algo simples; o Sistema Nacional de Saúde é constituído por pessoas, por pessoas que lidam com pessoas, pessoas diminuídas, pessoas incapacitadas, pessoas vulneráveis, não terá chegado o momento de dar formação a todos aqueles que lidam com estes públicos, no sentido de os sensibilizar para a necessidade de serem gentis, de serem suaves, de serem corteses, de serem humanos, de serem claros, de olharem nos olhos aqueles que sofrem e que através dos seus impostos até lhes pagam os salários?
Sabemos que a vida não está fácil para os cidadãos que trabalham nos serviços de saúde, como não está fácil para aqueles que têm de recorrer a estes serviços, ou para quem trabalha na restauração, ou para quem gere pequenos negócios, ou para quem depende da publicidade, em suma, a vida não está fácil para ninguém, mas todos temos de racionalizar recursos e de potenciar soluções novas.
Deixem os remendos para quem não sabe fazer, sirvam-se da imaginação e transformem o serviço de urgência do Hospital de Torres Vedras, num serviço de excelência – não aceitemos menos do que isso.
Nada do que aqui fica dito exalta ou apouca os das direitas ou os das esquerdas, pois a cidadania não tem cor, só tem qualidade ou falta dela.
Paulo Quintela
Diretor do Jornal de Mafra