Crónica de Mário de Sousa Não batas com a porta! Disse… Não batas com a porta! Disse…[i] Mas ela já ia no seu caminho desaustinado, terminando com estrondo ao embater na ombreira. E eu ficava empolgado com o ruído e dentro de mim, sentia um orgulho enorme, um poder indescritível por ser capaz de gerar aquele pandemónio. A minha mãe encolhia os ombros resignada, a minha avó ‘resmoneava’ com diversas intensidades de ‘Hum, Hum’ e a tia Bernarda abanava a cabeça compondo o carrapito, como se o estrondo a tivesse…
Ler maisCategoria: Mário de Sousa
Crónica de Mário de Sousa | História de N’Nori
Crónica de Mário de Sousa História de N’Nori Noite dentro, nuvens negras e acasteladas rugiam de zanga, desfazendo a escuridão com relâmpagos sucessivos. Na tabanca, as torrentes de água desabavam nos telhados de colmo, corriam em pequenos rios que desaguando no chão de terra batida provocavam pequenas crateras esparrinhando barro vermelho para o ar. Toda a gente se tinha refugiado nas casas de adobe e colmo e o grande fugu na bantabá resfolegava os últimos suspiros, submerso naquela água que o céu despejava, certamente insatisfeito com os homens que ali…
Ler maisCrónica de Mário de Sousa | A tartaruga e a carapaça
Crónica de Mário de Sousa A tartaruga e a carapaça O africano animista é dotado de um espírito imaginativo de sentido pragmático que o ajuda a procurar sempre explicar factualmente, a razão de ser das coisas do mundo, o que lhe permite viver de forma racional todas as irracionalidades aparentes que o rodeiam. Assim, a sua miscigenação com a Natureza dá-se de forma natural e simples. Tive oportunidade de participar nesta forma de viver entre os deuses e a vida real, quando visitei as ilhas Neram N’Dok no Arquipélago…
Ler maisCrónica de Mário de Sousa | Joaquim, o último escravo…
Crónica de Mário de Sousa Joaquim, o último escravo… Alto, porte atlético, o peito lançado para a frente permitia-lhe um caminhar rápido e firme. O ombro esquerdo um pouco descaído, acusava o peso de um saco de pano que descia até quase à cintura. A estrada seguia plana até onde a vista alcançava. Para trás ficava Bafatá e ao longe, à esquerda, começava a aparecer a chaminé da velha Cerâmica. Havia cerca de um ano que Gibril Mané não vinha à sua tabanca. Chegara a meio da noite…
Ler maisCrónica de Mário de Sousa | Cronos devorator
Crónica de Mário de Sousa Cronos devorator O avião da TAP preparava-se para aterrar. Viu os musseques e em fundo a baía de Luanda, resplandecente, feérica. Alexandre estava de regresso. Lembrou-se da sua viagem no navio Niassa. No convés, quando a noite caía e o mar ganhava a cor do céu sempre que as nuvens destapavam a Lua, tentava contar as ondas e semicerrava os olhos, protegendo-os dos fulgores de prata que elas desprendiam. A proa do navio cortava o líquido espumando-o para os lados. Para trás, via…
Ler maisCrónica de Mário de Sousa | Silly Season à portuguesa
Crónica de Mário de Sousa Silly Season à portuguesa Terminou a silly season em Portugal e ainda bem porque esta terá começado da pior forma com um ataque soez à liberdade de expressão e de imprensa aqui em Mafra. Para uma silly season como esta chamam os ingleses “Tempo do Pepino” A minha última crónica, talvez porque já tinha começado o ‘tempo do pepino’, foi vítima de uma atitude pepineira. Meia dúzia de ‘pepineiros’ resolveu apresentar uma denúncia ao Google por o texto ser de cariz sexual. Claro…
Ler maisCrónica de Mário de Sousa | Uma lata de Kenco
Crónica de Mário de Sousa Uma lata de Kenco Arrumar a minha garagem hoje convertida em biblioteca e arquivo, termina sempre numa viagem ao passado porque se relê um caderno de apontamentos, se descobre um disco (daqueles de vinil), uma fotografia, um convite, um ínfimo cartão-de-visita, um guardanapo assinado. Por vezes a lágrima resvala num qualquer pedacinho de argila a dizer ‘És o melhor Pai do Mundo’. Tudo isto me fez lembrar a minha lata de café Kenco. Vou-vos contar o porquê desta lata ser importante para mim.…
Ler maisCrónica de Mário de Sousa | ‘Acto da Primavera’ – O Quotidiano Religioso
Crónica de Mário de Sousa ‘Acto da Primavera’ – O Quotidiano Religioso Em 1958, passeando por Trás-os-Montes na busca de moinhos que lhe pudessem ser úteis como elementos de um filme sobre o pão, Manoel de Oliveira tropeçou um dia em três grandes e toscas cruzes de madeira no topo de um cerro. Procurou o seu porquê, obtendo como resposta que aquelas cruzes eram utilizadas na Primavera, numa festa popular onde se recriava a Paixão de Cristo, na localidade de Curalha, arredores de Chaves. Interessa-se pela história e…
Ler maisCrónica de Mário de Sousa | ’Douro, Faina Fluvial’ – O Quotidiano Profano
Crónica de Mário de Sousa ’Douro, Faina Fluvial’ – O Quotidiano Profano Fez no passado dia 5 de Abril sete anos que Manoel de Oliveira faleceu. Idolatrado por uns, amado por outros e odiado por muitos, a sua falta de consensualidade deve-se ao pouco conhecimento que temos do cinema de autor. Pouco antes da sua morte, num colóquio sobre cinema português na Universidade Aberta apresentei uma comunicação com o título ‘Douro Faina Fluvial’, ‘Acto da Primavera’: os quotidianos profano e religioso em Manoel de Oliveira’. É a 1.ª…
Ler maisCrónica de Mário de Sousa | O regresso
Crónica de Mário de Sousa O regresso Uba Nhaga regressou da Bissau. Muitos anos de trabalho, dois cobertores de lã, dois pares de sapatos, uma farda de ganga descorada e algumas notas de peso dentro da mala de chapa, eram todas as suas bambas. Sem troco para toca-toca, viajou no pé, comeu raízes da terra e bebeu água de bolanha. Uba Nhaga, velho e cansado, voltava ao seu chão. Pouca gente encontrou na tabanca. Das suas mindjeris apenas a garandi, a primeira mulher, o esperou. Fora a única…
Ler mais