O Spectrum por Licínia Quitério Foi o primeiro computador a entrar cá em casa. Duas caixas pequenas, com seu ar misterioso. Duma delas saiu o dito ZX Spectrum, da outra uma impressora da falecida Timex, mais uns carregadores que pesavam dez vezes mais que alguns dos actuais. O espectro solar ali estava, pintado no canto inferior direito, as cores do arco-íris a alegrarem o negro, a assinalarem o nome de baptismo da máquina. Na casa ouvia-se já falar de programação e programadores, fosse lá isso o que fosse para…
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Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Conversa de velhos
Conversa de velhos por Licínia Quitério Agora tem tempo, não é como dantes, sempre numa corrida, trabalho, trabalho, trabalho, anos, muitos anos de dureza e pouco ganho. Já quase a despedir-se para a reforma, o corpo dorido, nenhuma esperança em melhor sorte, a preparar-se para os últimos anos da viagem, quando deus quiser que me leve, que já vi tudo o que há para ver, aconteceu o milagre, que ainda acontecem, segundo ele afirma de prova provada. A mulher muito o atenazava por causa daquela despesa todas as semanas,…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – A senhora C.
A senhora C. por Licínia Quitério Conheço-a desde sempre, desde que eu era criança e ela uma jovem mulher, de gargalhadas frequentes e sonoras, loira, pobre, muito pobre, no tempo de haver muitos pobres, de vários e pesados trabalhos, de alguns filhos, minha vizinha, que o barraco onde vivia ficava num beco a abrir na minha rua. Décadas me levaram para outra terra e à senhora C. para outro beco a abrir noutra rua. Quando regressei ao meu lugar primeiro, encontrei-a. Ficámos contentes, rimos ambas, eu com um sorriso…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Os microcosmos
De ontem e de hoje – Os microcosmos por Licínia Quitério Em pequena, eu construía jardins, miniaturas de jardins. Uma pétala era uma flor, um pecíolo um tronco de árvore, uma folha podia ser um lago, que um jardim sem lagos não é jardim. Folhas secas esmagadas desenhavam caminhos por entre aquela vegetação toda. Eu preocupava-me com a simetria dos canteiros, por isso os meus microjardins pareciam-se com os jardins barrocos, digo eu agora. Eu gostava de construir mundos pequeninos onde me pudesse passear sem ser levada pela mão.…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O Cadeado
De ontem e de hoje – O cadeado por Licínia Quitério Tocou à campainha. Vinha de robe azul claro, chinelos de tiras, os braços apoiados em canadianas, e tremia e dizia, desculpe, desculpe, eu estou muito aflita, se a senhora me fizer o favor de me ajudar, o telemóvel, não percebo de telemóveis, quero telefonar ao meu filho, ele ainda não apareceu hoje, estou muito aflita, não consigo ligar-lhe, aparece um cadeado, eu não percebo nada destas coisas, se a senhora puder. O meu marido, o meu marido desapareceu,…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Joanetes
De ontem e de hoje – Joanetes por Licínia Quitério A Dona Cândida tinha joanetes. Era para onde eu mais olhava quando ela vinha fazer a sua visita anual e ficava uns dias em casa da minha avó. A Dona Cândida era solteira, solteirona, diga-se, que já ia avançada na idade, uma velha muito velha, no meu entender de criança. Vivia para os sobrinhos que eram as pessoas mais inteligentes, mais bonitas, mais bem educadas deste mundo. Filhos da sua irmã e do seu cunhado, só poderiam ter saído…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O Carlos
De ontem e de hoje – O Carlos por Licínia Quitério Aparece aos Sábados, o dia da folga, presumo, de trabalho precário, de salário pequenino. Isto a avaliar pela qualidade da vestimenta, dos sapatos, pelo saco dos pertences. Tudo nela é sinal de escassez de meios, de solidão de fim de semana. Do saco vão saindo outros sacos, um deles com pedaços de pão que ela vai mordiscando. Do outro, espreitam fios de lãs de várias cores com que compõe, em gestos hábeis, flores de crochet. Imagino que daqui…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Verão 75
De ontem e de hoje – Verão 75 por Licínia Quitério Um homem-menino chegado da soleira de outro tempo abriu um sorriso nos olhos de Clarisse. Não se lembra do nome dele. Dirá que se chama Fernando. Tinha fome e tinha medo e levaram-no ao encontro de outras fomes, de outros medos. Era uma vez uma aldeia perdida, lá no fundo, passado que fosse o leito seco do ribeiro… Era? Clarisse no declive da serra, rodeada de canções de luta e sobressalto, levando nos braços a maior esperança do…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Ferramentas
De ontem e de hoje – Ferramentas por Licínia Quitério Gosto de ferramentas, daquelas palpáveis, com nomes de martelos, chaves, parafusos, e mais mil, e tentar fazer uso delas nas reparações das pequenas avarias que vão surgindo nas casas. Vem este gosto de quando acompanhava o meu Pai nos consertos caseiros, nas inovações de que ele era capaz, e me ensinava nomes e serventias, dando-me mesmo o cargo de ajudante – dá cá a chave inglesa, dá cá duas porcas sextavadas, vês este parafuso, tem cabeça de tremoço. E…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Os anos
De ontem e de hoje – Mister Browne por Licínia Quitério Por razões profissionais, conheci em tempos um americano típico, Mister Browne, húngaro de nascimento, a viver em Los Angeles, um homenzarrão dos seus sessenta anos, de grandes bigodes grisalhos, que me aparecia de lencinho colorido ao pescoço e não raro com um chapelão de cow-boy. Tratava-me por Maria, eu sempre lhe dizia que não era Maria e ele, imperturbável, continuava, Yes, Maria, tal como tratava todas as jovens portuguesas que, como eu, eram empregadas e tinham patrão. Visitava…
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