Licínia Quitério

 

Casa de Hóspedes (11º. Episódio)

Era num anexo da Igreja setecentista, uma meia porta aberta, um degrau exterior para subir, dois interiores para descer. Um perigo, dizia a Dona Júlia, quando o tempo está de humidades não é preciso mais para se escorregar e partir uma perna, que Deus nos defenda, e persignava-se. No átrio de lajedo, à direita, um corredor mal iluminado dava acesso, ao fundo, à casa, para um ou dois lugares de morto, propriamente dito. Só um estava ocupado. Tem de ser o Lomelino, dizia o Gil para o Zeferino, a meia boca, quando chegares logo vês, isto cheira a cera que tresanda, no que é que a gente se veio meter. Já lá se encontrava a família, a mais chegada e a outra dos casamentos e funerais, vizinhos, conhecidos e até os desconhecidos, que ocupam o tempo vazio de velório em velório, de funeral em funeral, dando sempre os sentimentos a quem apanham a jeito e que presumem ser o triste mais próximo do ente querido que se apagou. A Dona Júlia foi sentar-se mesmo ao lado da viúva, que a filha deixou a cadeira vaga, sente-se a senhora que eu estou a ficar sem ar e vou até lá fora. Obrigada, filha, cuida-te e abafa-te que está frio. O Gil não tirava os olhos da viúva, o traje preto fazia ressaltar a brancura da pele ainda fresca, mal empregada, pensava, e depois para o Zeferino, não me importava de a consolar, cala-te, pá, não sejas javardo, e sorriam. Ouviram-se passinhos miúdos no corredor, alguns pares de olhos tentaram divisar quem chegava até perceberem que eram a D. Adélia e o Sr. Mário, ele de gravata preta e ela com um veuzinho preto nos cabelos brancos, qual retrato de noiva em negativo. Olha que parzinho, murmurou o Zeferino, isto está a parecer um filme do Buñuel. Achas que a gente devia ter trazido gravata, tás parvo, já agora era o que faltava. E tu vê mas é se tiras os olhos da viuvinha antes que o falecido tope.

O silêncio não durou muito e começaram a esboçar-se conversas em palavras curtas, em tom baixo, com tendência para avolumarem e se alargarem entre os circunstantes. Gil e Zeferino, de bons ouvidos e alguma curiosidade, iam retendo palavras, frases, sinais de cumplicidade entre as mulheres, nos lugares mais afastados do caixão.

A esta hora já lá está a prestar contas. Pobre Adelaide, enganadinha até quase ao último momento. Uma mulher bonita e asseada como ela ser trocada por aquela mastronça. Não sei o que é que ele via nela, francamente. Homens, senhora, homens, gostam de provar o alheio e não cuidam do que é deles. Acha que o outro sabia, ó senhora, tinha de saber. Consta que um dia até os apanhou em preparos. Consta, que a vida deles só a eles interessa. Isto é a gente a falar. Ai coitadinha da Adelaide, com dois filhos ainda para acabar de criar. Que Deus tenha em descanso a alma do Lomelino. Apesar das malandrices não merecia ir tão novo para a terra da verdade. Lá isso não. Se calhar cansou-se, coitado. Há homens que não chegam para uma quanto mais para duas. Bem o diz, bem o diz.

Um suspiro deu intervalo ao diálogo das duas mulheres, que desataram a abanar-se, quando o calor dos corpos e das velas começou a ensopar a sala onde se acompanhava um morto, a família do morto, e se preparavam novas vidas, que a morte é certa mas amanhã é outro dia.

(continua)

 


Pode ler (aqui) as crónicas quinzenais de Licínia Quitério.