Crónica de Mário de Sousa
Uma lata de Kenco
Arrumar a minha garagem hoje convertida em biblioteca e arquivo, termina sempre numa viagem ao passado porque se relê um caderno de apontamentos, se descobre um disco (daqueles de vinil), uma fotografia, um convite, um ínfimo cartão-de-visita, um guardanapo assinado. Por vezes a lágrima resvala num qualquer pedacinho de argila a dizer ‘És o melhor Pai do Mundo’. Tudo isto me fez lembrar a minha lata de café Kenco. Vou-vos contar o porquê desta lata ser importante para mim.
Nos idos de 80 do século passado, vivi em Londres durante algum tempo junto a uma pequena praça tipicamente londrina. Quase quadrada, bordejada por prédios de três andares feitos do tradicional brick, o centro todo ocupado por um jardim de verdes escuros, bem servido de bancos de ripas de madeira, todos eles abrigados em copas de cedros; uma cerca de ferro pintada rodeava-o, dando-lhe um aspeto acolhedor e amigo. No fim do meu dia de trabalho, a caminho de casa invariavelmente atravessava esse jardim. Um dia, resolvi sentar-me num banco vazio e gozar aquela paz. Do outro lado do caminho os esquilos dançavam no seu afã de busca de comida, saltando e atropelando-se mutuamente enquanto os melros depenicavam grãos que só eles viam. No banco à minha frente, um casal idoso bebia de forma contemplativa o seu café por chávenas altas com uma grande asa. Cumprimentei-os com um leve aceno de cabeça e em resposta recebi a oferta de um sorriso. Acedi ao início de uma conversa de circunstância; o que fazíamos, quem éramos, porque estava-mos ali. Eram Mrs. e Mr. Zoltowski; ela Shara, ele Andrew; ela inglesa de Fulham, ele filho de emigrantes polacos, mas nascido em Hackney, Londres. Por aqui ficámos.
No dia seguinte quando os encontrei à tardinha, Andrew exibiu uma terceira caneca oferecendo-me café; não recusei e absorvi-o em pequenos goles desfrutando aquele cheiro tão agradável. Foi o meu primeiro Kenco. Falámos, do fog, do spleen, do sol abrasador do dia com os seus 17 °C, da tarde que ia terminando a exibir fagulhas de mil matizes que atravessavam os espessos verdes do jardim. Os dias passaram e dos encontros acompanhados de um Kenco ao fim da tarde, foi nascendo uma amizade desinteressada e muito companheira. Fiquei a saber que os pais de Andrew tinham chegado a Inglaterra no início do Século XX vindos de Poznan, no noroeste da Polónia. O pai, carpinteiro, ganhava a vida em Londres como tanoeiro. Andrew, o mais velho de dois irmãos, veio ao mundo poucos dias depois de rebentar a I Grande Guerra. Shara tinha nascido em Fulham. O pai, escrivão num cartório, era um homem culto e que soube transmitir aos filhos o valor da instrução. Por volta de 1936 mudam-se para Putney onde Shara conhece Andrew. Apaixonam-se e casam 3 anos depois. Ela com 20 e ele com 25. Em 1939 rebenta a 2.ª Guerra Mundial. Andrew alista-se nos Royal Welch Fuziliers Corps e segue para o norte de África onde toma parte na reconquista da cidade egípcia de Sollom. O seu regimento segue depois para o Cairo e por lá estabelece quartel. Nos 3 anos que se seguem, apaixona-se pela cidade, meio árabe, meio católica, meio copta. O Cairo oferecia-lhe um cosmopolitismo semelhante ao londrino e isso cativava-o. Chega mesmo a considerar ficar lá a viver chamando Shara para ao pé si, mas por essa altura ela havia aderido ao Women’s Land Army e de sol a sol, dava o seu contributo para levantar a produção agrícola do país e ajudar a reduzir os terríveis problemas da escassez de alimentos. A guerra avança, e em Janeiro de 1943, Andrew integra uma força de combate que é destacada para os arredores de Tunis e por lá fica até Maio, quando se dá a rendição do Afrika Corps. Mais uma vez de regresso ao Cairo, a paixão pela terra reacende-se e Shara vai então para o Egipto ao seu encontro. Vivem dias estonteantes de felicidade e amor. A guerra chega ao fim e Andrew é desmobilizado em Julho de 1945.
No Egipto do pós-guerra há poucos lugares para estrangeiros, mesmo que fossem ingleses. Andrew era descendente de polacos e o Egipto tinha declarado guerra à Polónia. Zoltowski era um apelido incómodo por essa altura no Cairo e as poucas oportunidades que existiam, nunca seriam entregues a um inglês de origem polaca. Desiludidos, em finais de 46 regressam a Londres e vão viver para o bairro onde os encontrei 35 anos depois. Tanto tempo passado e as lembranças do Cairo ainda incendiavam os olhos de Andrew, tornando-os brilhantes de saudade e excitação.
Com o tempo a passar, a saúde de Andrew foi-se degradando e por fim, já não vinha à tardinha ao jardim. Ficava-se por casa, sentado no seu sofá com as pernas bem agasalhadas na sua manta de xadrez. Depois do jantar eu ia até lá e conversávamos, caneca de Kenco na mão, e pela boca dele eu viajava pelos desertos do Egipto e da Tunísia, sentia o calor esbraseante dos dias e o frio agudo das noites, os mugidos dos camelos e o cheiro do combustível queimado pelos tanques MK III. E sentia o Andrew lá longe voando, mão dada com a sua Shara. Pelas 10 da noite, era ela que nos lembrava a conveniência de deixarmos o resto da história para o dia seguinte. Um dia, à porta apareceu-me uma Shara chorosa; o coração do seu Andrew tinha cedido e estava desde a hora do almoço no hospital a lutar pela vida. Serviu-me o Kenco e, na sua voz pausada, mas enérgica, contou-me como tudo acontecera. Passaram-se quatro dias e, de mão na mão da sua Shara, Andrew despediu-se deste mundo. Acompanhei-o na sua última jornada. Teve honras militares e Shara sem uma lágrima, recebeu a bandeira inglesa que cobria a urna.
Com o tempo, tudo voltou ao normal, apenas agora éramos só dois que bebíamos o Kenco ao fim da tarde; eu e a Shara. Já não falávamos do deserto, mas sim do Cairo no pós-guerra, com Shara a descrever-me as cores, os sons, as luzes e os cheiros do ar quente. Falávamos de algo que lhe dava um prazer enorme, das malas de mão de Margret Thatcher. Mas tudo tem um fim, e chegou a altura do meu regresso a Portugal. No dia da despedida, muito direita, mas algo chorosa, ofereceu-me um saco de papel com um grande laçarote em fita. Nessa tarde, bebemos o nosso Kenco e despedimo-nos, sabendo que provavelmente seria a última vez que nos víamos. Quando cheguei a casa, abri o saco e lá de dentro saiu uma lata em forma de casa e no telhado, gravado em relevo dizia: The Kenco Coffee Company of London. Chorei…
No início de Abril de 1999 voltei a Inglaterra para mostrar Londres à Carolina. Fui um cicerone competente, mas nunca fui capaz de me aproximar do sítio onde vivi e enfrentar a realidade de mais uma perda. No dia do nosso regresso, fomos a Padington para comermos ‘kidney pie’ no King George Arms. No caminho passámos numa loja com o nome ‘The Good Old Days’. Fiquei gelado; na montra em destaque, uma lata em formato de casa e no telhado escrito ‘The Kenco Coffee Company of London’. Senti os olhos embaciarem-se; olhei para dentro da loja e no lusco-fusco da tarde, pareceu-me ver através do vidro diáfano da montra, a figura de Shara, sentada atrás do balcão acenando-me um adeus.
Mafra, 23 de Junho de 2022
Mário de Sousa