Crónica de Mário de Sousa
‘Acto da Primavera’ – O Quotidiano Religioso
Em 1958, passeando por Trás-os-Montes na busca de moinhos que lhe pudessem ser úteis como elementos de um filme sobre o pão, Manoel de Oliveira tropeçou um dia em três grandes e toscas cruzes de madeira no topo de um cerro. Procurou o seu porquê, obtendo como resposta que aquelas cruzes eram utilizadas na Primavera, numa festa popular onde se recriava a Paixão de Cristo, na localidade de Curalha, arredores de Chaves.
Interessa-se pela história e resolve do acontecimento fazer um filme a que chamaria ‘Acto da Primavera’. O plano da obra é simples: filmar a representação de algo que teria ocorrido há dois mil anos, descrito no século XVI por Francisco Vaz de Guimarães, representado no século XX pelas gentes da Curalha, linguarejando de forma medieval para megafones. O resultado acaba por se saldar numa espectacular obra cinematográfica que dividiu a filmografia do realizador num antes e num depois.
Pela primeira vez, Manoel de Oliveira faria tudo: a realização, a produção, a fotografia e o som e num ato inédito, registaria no celuloide as máquinas de filmar e o próprio gravador de som. O resultado é um filme em que o espectador está na quarta linha a assistir; em cena, o tempo de Cristo como foi entendido no século XVI, mas de acordo com o século XX; depois, a multidão que assiste ao ‘Acto’ em anfiteatro; de seguida, a equipa que filma e grava o som e que também fica no retrato; e por fim, nós espectadores, que assistimos à projecção da película.
A religiosidade e o respeito sentidos pelas gentes de Curalha eclode ao gritarem quando Cristo aparece à Samaritana: ‘Venham ver, venham todos ver, um homem armado em Cristo…’. A eterna dúvida cristã. O que é então este filme? O que significa contar esta a Paixão de Cristo?
Segundo Oliveira, o seu cinema não tem política nem religião, mas as suas raízes são judaico-cristãs, e não consegue apagar da sua personalidade esse estigma. E é sob o liame dessa religiosidade, nesse conflito profano-religioso, que filma a Paixão de Cristo, encenada todos os anos pelas gentes daquele lugarejo encravado no Nordeste do país.
O filme no seu realismo põe-nos na dúvida; estamos a assistir a uma ficção ou ao registo cinéfilo duma encenação dos habitantes de uma terra fervente de religiosidade? Na verdade, a ficção, se assim se pode chamar, pertence não a Manoel de Oliveira, mas a um escritor medieval, e a espectacularidade das imagens pertence aos habitantes da aldeia. Onde reside então o trabalho do realizador? Na tensão que se gera e que dá a este filme o seu carácter único, ao proporcionar apreensões sensoriais que se transformam numa polifonia religiosa e temporal em que cada personagem é um personagem bíblico e simultaneamente tem uma existência própria, um corpo, uma face atual.
‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus…’ Estas são as primeiras falas deste ‘Acto da Primavera’ enquanto a natureza explode em luz, vigor e cor e em fundo, Cristo fala numa Ressurreição.
Ressalta de imediato neste clima religioso a ideia de que o humano sem o divino não se cumpre, mesmo que a existência se resuma à Natureza selvagem, intocada e que os homens vivam em comunhão permanente com ela.
Surge então um presente que se quer eterno nos trabalhos de lavoura, nos bois, no arado, na enxada cega e relampejante, um passado marcado pelo religioso na recriação do auto da Paixão, e na ideia mitico-religiosa da chegada de um Messias.
Evoca-se depois o pecado, o Homem combatendo o Homem em lutas de varapaus, o feroz cornear das bestas pela posse do espaço, a ambição da conquista da terra, sendo que a terra é entendida como algo que nos devolve no dobro, a vida que lhe emprestamos.
Na obra, não é tanto uma religiosidade cristã, que se expressa, mas sim a procura do papel dessa religiosidade civilizacional no quotidiano, a maneira como o homem diariamente presta louvores ao seu Deus.
Como consequência, o que fica filmado é a expressão autêntica de um ‘Acto’, de uma ‘Paixão’ que levou todo um ano a ser interiorizado nas homílias dominicais de um povo que precisa de Deus para viver, mas que contraditoriamente, num acto de amor, celebra todos os anos a Paixão e morte do seu Filho.
A carne e o espírito entrelaçam-se numa dança iniciática, sensual, e é neste jogo carnal e espiritual que Manoel de Oliveira imprime um toque de sensibilidade religiosa ao evidenciar em plano fechado, Maria Madalena a beijar os pés de Jesus, permitindo com lascívia, que os seus cabelos deslizem sobre os pés nus do Salvador. Oliveira mostra assim como este povo crê que o segredo da religiosidade está na submissão do homem a Deus e que este gesto tão puro de Maria Madalena, para além de gesto é também um acto de carinho, de compaixão por alguém igual a todos os outros, retrato de cada um deles, e que ao estar ali disposto a sofrer por todos os homens, lhes aponta um caminho.
Para as gentes de Curalha, o seu quotidiano religioso reside no conhecimento e no temor ao divino bem como na preservação de um espaço sagrado que lhes permita afastar a ideia de viverem fora do mundo religioso.
É nesta fuga à visão de um Cristo que agonizou e morreu, amortalhado, sem rosto, que o filme termina quando nos rebenta nos olhos a bomba atómica, lembrando todos os horrores da guerra, evocação cristã do Demónio a justificar todos estes actos loucos de homens possessos e irremediavelmente comprometidos em atitudes anti-Cristo.
Neste ‘Acto da Primavera’, Manoel de Oliveira confessa-nos a sua fé, não uma fé cega num Além abstracto mas uma fé pragmática num Homem que fez história, que marcou uma época e que iniciou uma Era, a nossa.
No ‘Acto da Primavera’ o plantar a terra, a procriação, a diversão, surgem como expressões religiosas, na medida em que pretendem ser oferendas quotidianas a Deus. A dança, a representação e a música de tambores, faziam parte da vida como cultos antigos, sendo considerados fundamentais, tais como hoje ainda o são, em Curalha. O homem religioso que cultiva o sagrado, necessita de todos os dias franquear a porta da sua igreja, pois esse acto garante-lhe uma solução de continuidade. Essa porta não é mais do que a fronteira que separa os dois espaços da sua vida, o espaço profano, o exterior e o espaço sagrado, o interior. Este homem religioso tem a necessidade de se sentir a viver o mais perto possível do seu Deus, e por isso lhe celebra o ‘Filho’ e a sua corte de Santos.
Este filme paradigmático, demonstra a Fé intemporal do realizador, mas também a desconfiança que lhe incutem as suas ideias surrealistas quando lembra Buñuel ao dizer:‘… Buñuel não confia no ser humano porque não confia em Deus, e o ser humano é uma criação de Deus.’. Ele não diz que não acredita, ele diz que ‘… não confia… ’.
Mafra, 9 de Junho de 2022
Mário de Sousa
https://cinecartaz.publico.pt/Filme/28259_acto-da-primavera
O ‘Acto da Primavera’ não se encontra disponível na Net mas pode ser adquirido no circuito comercial. No entanto está disponível uma introdução ao filme em
https://www.youtube.com/watch?v=QQNeUZsL2bM e a sequência final da película em
https://www.youtube.com/watch?v=4izLls-r2bQ ambos legendados em italiano.