O ano terminou mal. Em Dezembro o país arrepiou-se com o crime hediondo de um homem que degolou a companheira na frente dos filhos desta; um bebé de 2 anos e um menino de 5. Para terminar um 2019 fértil, um crime não menos sórdido porque violador da pessoa humana: ficámos a saber que um distinto banqueiro deste país gratificava a esposa com €2.000,00 mensais para que esta lhe garantisse ‘estabilidade emocional ‘ (seja lá isso o que for). Não é um crime de sangue mas é um crime soez, violentíssimo, contra a dignidade remunerar a sua mulher pelos afetos que esta lhe concede. É torpe!
Por aqui, para consumo interno do concelho já vamos tendo alguns casos que nos devem preocupar. Uma sociedade permissiva e que procura ignorar estes problemas é uma sociedade doente, desprotegida, com autoestimas diminutas e perdida numa escuridão de falta de valores. Vai ficando embotada, sem calor, sem destino! É a célula Família a modificar-se.
E nesta ponta da Ibéria, esta sociedade complacente e comprometida afirma que aqui as coisas até estão melhores. O Expresso, em artigo publicado no caderno de Economia de 28 de Dezembro de 2019 mostrava o quadro ao lado. O nosso 35º lugar nesta lista coroa um ano de sucessos neste campo.
Tudo isto empurrou-me para neste início de ano homenagear todas as mulheres portuguesas e em especial as do nosso concelho e para isso pensei em transcrever aqui dois textos que muito me impressionaram. O primeiro foi escrito por uma célebre feminista, Olive Schreiner (1855-1920), extraordinária escritora sul-africana. No seu conto ‘Página em Branco’ uma das suas heroínas segura num livro e teoriza sobre a história literária, produzindo um dos mais belos textos sobre a mulher criadora:
“Quando seguro estas folhas de papel entre os meus dedos, da distância longínqua do passado ouço o som das mulheres que batem as fibras de cânhamo e linho para fazer a primeira peça de roupa, e, mais forte do que o bramido das rodas e máquinas de fiar na fábrica, ouço o zumbido da primeira roca de fiar do mundo e a voz da mulher sentada ao seu lado e cantando para si própria, e sei que, sem o trabalho destas primeiras mulheres ajoelhando-se sobre as fibras e batendo-lhes rapidamente, e sem o zumbido destas máquinas primitivas, nem a fábrica nem a polpa de papel teriam existido… Este pequeno livro! – está profundamente, muito profundamente, enraizado na vida da humanidade sobre a terra; cresce dela.”[i]
Para Schreiner nenhuma mulher é uma página em branco; cada mulher é autora da página e autora da autora da página. E acrescenta que a arte de produzir o essencial – crianças, comida, tecido – é a criatividade suprema da mulher.
E porque a maioria das portuguesas são cristãs, faz sentido terminar esta singela homenagem lembrando Elizabeth Fiorenza no seu ensaio As Obras da Sabedoria – Sophia: A herança ambígua da Woman´s Bible quando cita Anna Shaw em Toward a Tradition:
“A democracia do Evangelho tem de permear a democracia do nosso país e nós temos de aprender que, tal como a mão não pode dizer ao pé ou o ouvido ao olho ‘Não preciso de vós’, também aqueles que têm instrução não podem dizer àqueles que não a possuem ‘Não preciso de vós’, e o rico não pode dizer ao pobre ‘Não preciso de vós’. Precisamos todos uns dos outros; temos de viver e crescer juntos: caso contrário, os sobreviventes terão que ficar acorrentados ao corpo doente e corrupto dos excluídos. Não podemos separar-nos deles.”
É um bem inestimável perceber como a Democracia pode ser Cristã. A vida inclusiva é sem dúvida muito mais bonita!
Desejo a todos um Bom Ano.
Mafra, 15 de Janeiro de 2020
Mário de Sousa
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[i] SCHREINER, Olive, From Man to Man, (Chicago: Academy Press, 1977), p. 409 in A “Página em Branco” e Questões acerca da criatividade feminina, Susan Gubar
Este ensaio encontra-se em “Antologia Crítica do Feminismo Contemporâneo – Género, Identidade e Desejo”, Macedo, Ana Gabriela, Organização, Edições Cotovia, Lda, Lisboa 2002, p.97-124
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