No 1º dia de março, o Jornal de Mafra publicava um artigo – Lixo vale 18 milhões de euros nos próximos 8 anos – onde dava nota de que a Câmara de Mafra, após a realização de um concurso público destinado à “Aquisição de serviços de recolha e transporte de resíduos urbanos a destino final, e de manutenção e lavagem de contentores”, tinha posto fim a muitos anos de parceria comercial com a Ecoambiente, uma empresa que teve à sua frente, até ao ano passado, um conhecido militante social-democrata, António Fernando Couto dos Santos, entregando o negócio à empresa SUMA, com base, exclusivamente, no fator preço.
Naquele artigo, dávamos ainda conta das palavras de Presidente da Câmara de Mafra, quando anunciou ao executivo os resultados do concurso, “o júri do concurso não aceitou nenhuma reclamação – para além da empresa vencedora, concorreram ainda, a Ecoambiente e a Luságua -, tendo o presidente afirmado que neste sector, a litigância era muito grande e que um dos objetivos de só valorizar o fator preço, passaria precisamente, por diminuir a litigância” [Jornal de Mafra] .
A 30 de janeiro, o júri deste concurso – Ana Viana, diretora do departamento de administração geral e finanças, Nuno Soares, chefe da divisão de ambiente do departamento de urbanismo, obras municipais e ambiente e Vasco Mota, dirigente da unidade de contratação pública e aprovisionamento – depois de excluir liminarmente 4 das 7 empresas que se apresentaram a concurso, produziu o Relatório Preliminar, que avaliou e ordenou as 3 propostas que se apresentaram a concurso.
Na fase de Audiência Prévia que se seguiu, as duas empresas preteridas, Luságua e Ecoambiente tiveram então ocasião de se pronunciar, por vezes de uma forma veemente, acerca das conclusões do Relatório Preliminar.
Numa contestação com 27 páginas, a que o Jornal de Mafra teve acesso, a empresa Luságua afirma que “A presente pronúncia traz ao conhecimento da Exmo. Júri do Procedimento, questões absolutamente cristalinas e irrefutáveis que só podem vir a ter um desfecho possível: a sua procedência, com a consequente exclusão da proposta formulada pelo concorrente SUMA […]”. Defendendo que a proposta vencedora não contemplaria todos os documentos exigidos, faltando o “Mapa dos custos envolvidos com pessoal, por serviço e por categoria profissional com as correspondentes condições salariais”. Alega ainda a Luságua, que a proposta vencedora também não cumpriria o número mínimo de recursos humanos exigidos pelo caderno de encargos do concurso, constituindo esta uma razão suplementar para que, na perspetiva da Luságua, a empresa vencedora fosse excluída.
Por seu lado, a Ecoamabiente, a outra empresa preterida, e atual concessionária, numa contestação com 29 páginas, à qual o Jornal de Mafra também teve acesso, refuta também os resultados do concurso, baseando igualmente a sua argumentação na alegada falta de apresentação de documentos relacionados com as “condições salariais do pessoal a afetar à prestação de serviços“, com os “custos de equipamentos por serviço“, alegando ainda que a empresa vencedora teria, alegadamente, desrespeitado os”parâmetros base fixados no caderno de encargos”, defendendo que na perspetiva da Ecoambiente, a empresa vencedora fosse excluída.
O Júri do concurso (Ana Viana, e os suplentes Rita Martins e Vasco Mota), depois de tomar conhecimento destas contestações, elabora o Relatório Final do concurso, um documento com 29 páginas, datado de 21 de fevereiro de 2020. No relatório pode ler-se que “[…] o júri deliberou, por unanimidade […] manter a ordenação das propostas para efeitos de adjudicação […] propondo, assim, a adjudicação ao classificado em primeiro lugar, ou seja, à concorrente SUMA – SERVIÇOS URBANOS E MEIO AMBIENTE, S.A. […]”.
A 28 de fevereiro de 2020 os concorrentes foram notificados da decisão de adjudicação à Suma S.A., reagindo a Luságua através da apresentação de um recurso hierárquico da decisão do júri e a Ecoambiente S.A., através de uma impugnação administrativa da decisão de adjudicação à empresa Suma S.A., processos que se encontram ainda pendentes de decisão judicial.
Na sessão de câmara de 24 de abril de 2020, o executivo rejeitou ainda um pedido da Ecoambiente S.A., no sentido de que a CMM procedesse a uma atualização extraordinária de preços do concurso.
No sentido de obter esclarecimentos adicionais capazes de completar a informação que aqui apresentámos, e de dar voz ao contraditório, o Jornal de Mafra quis conhecer as posições da Câmara Municipal de Mafra e das três empresas envolvidas neste concurso. Das 3 empresas, só a Ecoambiente respondeu às questões colocadas pelo Jornal de Mafra, fazendo-o de um modo afirmativo e, de algum modo contundente.
À questão de saber, que posições defendeu a Ecoambiente na fase de audiência prévia, a empresa refere o seguinte:
- “[…] a EcoAmbiente […] identificou vários erros grosseiros detetados nas propostas apresentadas pelos Concorrente SUMA, S.A. e Luságua, S.A., erros esses que deveriam ter determinado a exclusão das propostas destes concorrentes […] as propostas dos concorrentes […] não cumprem os critérios definidos nos documentos do concurso, violando os princípios da contratação pública […] estranha-se a análise específica e detalhada do Júri do Procedimento à proposta do Concorrente RRI, S.A., análise essa que determinou a exclusão deste último e que não foi realizada com igual transparência em relação às propostas dos Concorrentes SUMA, S.A. e Luságua, S.A.”.
Já em relação ao Relatório Final do Concurso, a Ecoambiente considera que aquele demonstrou “uma vez mais, a falta de transparência e rigor levada a cabo na análise das propostas apresentadas pelos Concorrente SUMA, S.A. e Luságua, S.A.”
- Refere ainda a EcoAmbiente que a concorrente Luságua, S.A. apresentou “uma proposta que viola os princípios da concorrência na medida em que indicia a prática de “dumping” ou de pelo menos “concorrência desleal”, e que o Júri não terá tonado isso em consideração.
- Adianta ainda que ” […] permitir a admissão ao procedimento, a um Concorrente como a Luságua, S.A. será uma afronta aos mais basilares princípios da contratação pública. Isto porque a admissão de propostas que revelem situações suscetíveis de falsear as regras da concorrência, é um ilícito de elevadíssima gravidade, na medida em que viola o princípio fundamental da contratação pública, a concorrência, que terá como consequência, necessária, a defeituosa execução do contrato” sendo que, afirma a Ecoambiente, “a própria Concorrente admite que o contrato lhe trará prejuízos“
- Acrescenta a Ecoambiente, “No que respeita aos incumprimentos, da proposta apresentada pelo Concorrente SUMA, S.A., qual não foi o nosso espanto quando o Júri do Procedimento, numa tentativa de justificar os referidos incumprimentos, ao longo de todo o Relatório Final, vem referir que as exigências incumpridas das Peças do Procedimento não vinham de todo descritas nas mesmas. Ou seja, o Júri do Procedimento alterou as regras definidas no Caderno de Encargos para beneficio deste concorrente“.
- “O Concorrente SUMA, S.A. não prevê, na sua proposta todos os custos associados e exigidos pelo Município de Mafra, para a presente prestação de serviços, facto este que injustificavelmente não ditou a exclusão da proposta apresentada pelo Concorrente, demonstrando intenção de negligenciar o interesse público com a adjudicação desta proposta, em detrimento da sua salvaguarda” refere ainda a Ecoambiente.
Relativamente à forma como o concurso acabou por decorrer, pode ler-se na resposta que a Ecoambiente enviou ao JM:
- “[…] estranhou-se que tenha sido definido como critério de adjudicação único, o preço das propostas apresentadas“, acrescentando que “[…] têm sido acrescidas as responsabilidades de cada Município em gerir os resíduos que nele são produzidos, tendo sempre como inerentes as preocupações ambientais relacionadas com a redução de resíduos depositados em aterro e consequente cumprimento com as metas europeias relacionadas“.
A Ecoambiente refere ainda, que na perspetiva de salvaguardar as preocupações ambientais “em fase de procedimento são também avaliadas e pontuadas as metodologias e propostas de atuação de cada concorrente como forma de salvaguarda dos Municípios em relação ao futuro da prestação de serviços que adjudicam, o que aqui não sucede“. Rematando, que “tendo em consideração a extensão do contrato inerente ao presente procedimento – 8 anos – conclui-se que o Município de Mafra não estará preocupado com a forma de atuação do futuro prestador de serviços, mas apenas com os custos associados ao mesmo, facto este que poderá comprometer ao longo dos 8 anos as metas ambientais“.
A empresa SUMA respondeu ao pedido de esclarecimentos formulado pelo Jornal de Mafra referindo que o mesmo lhe mereceu “a melhor atenção“, embora tenha entendido, nesta ocasião, “[…] não comentar um processo que ainda não se encontra encerrado, pelo que sugerimos que todas as questões com ele relacionadas sejam encaminhadas para a Câmara Municipal de Mafra”.
Por seu lado, Câmara Municipal de Mafra (CMM), não respondendo diretamente a qualquer das questões que colocámos, através de uma lacónica comunicação não assinada, respondeu ao JM, nos seguintes termos:
Informa-se que, no âmbito do concurso para “Aquisição de serviços de recolha e transporte de resíduos urbanos a destino final, e de manutenção e lavagem de contentores”, foram definidas regras claras, as quais foram conhecidas por todos os concorrentes, tendo sido vencedor o concorrente que, de acordo com a avaliação do júri, apresentou a melhor proposta.
Os concorrentes que ficaram em 2.º e 3.º lugares resolveram recorrer a tribunal da decisão de adjudicação, o que é um direito que lhes assiste. O processo está a aguardar a decisão judicial, tendo o Município de Mafra contra-argumentado a sua posição, aguardando-se pela decisão em questão.
A Luságua foi também contactada pelo Jornal de Mafra, mas até ao momento, não respondeu às questões colocadas.
De salientar ainda, que em Junho de 2019, a Câmara de Mafra fez um contrato com uma empresa especializada, para a realização de um estudo “técnico e económico de suporte às opções do novo contrato […] de recolha de resíduos urbanos“, um estudo que custou 24 415,50 €, mas cujas recomendações terão sido ignoradas pela Câmara de Mafra. ou colocar o fator preço como decisivo, no concurso.
Na análise deste diferendo, cumpre destacar a impotência efetivamente inusitada que a Câmara Municipal atribuiu ao fator preço na decisão de contratar, importância que se fundaria no conhecimento de que há muita litigância neste setor, litigância que a CMM pretendia evitar, algo que, pelos vistos, não conseguiu fazer. Por outro lado, a câmara, na resposta que nos remeteu, optou por não esclarecer que contra-argumentação aduz para se defender das alegações da Ecoambiente e da Luságua, não nos permitindo, assim, dar voz à sua versão dos factos.
As alegações da Ecoambiente, a confirmarem-se, assumem uma enorme gravidade. A provar-se a alegada “violação dos princípios da contratação pública”, a “prática de “dumping” ou de pelo menos “concorrência desleal”, a “admissão de propostas que revelem situações suscetíveis de falsear as regras da concorrência”, a provar-se que “o Júri do Procedimento alterou as regras definidas no Caderno de Encargos para beneficio deste concorrente”, a provar-se que possa ter havido “intenção de negligenciar o interesse público com a adjudicação desta proposta”, e que não tenham sido atendidas “as preocupações ambientais relacionadas com a redução de resíduos depositados em aterro” e ainda “que o Município de Mafra não estará preocupado com a forma de atuação do futuro prestador de serviços, mas apenas com os custos associados”, então, a assim ser, este concurso teria ficado ferido de morte.
É inegável, que o facto de se tratar de empresas concorrentes num concurso que atinge o valor de 18 milhões de euros, contribui para que a argumentação se possa extremar. No entanto, tendo em conta a gravidade de algumas acusações, é grande a expectativa com que se aguarda a decisão judicial, na certeza que, no plano político, PSD e PS, os dois partidos representados no executivo, votaram por unanimidade todas as posições tomadas pela Câmara de Mafra no âmbito deste negócio, surgindo aqui a par, para o bem ou para o mal, em termos de responsabilidade política.
Nota da redação: todos os realces do texto são da responsabilidade do Jornal de Mafra.