EDITORIAL
Tapada de Mafra ofuscou a inscrição do Real Edifício de Mafra como património mundial da UNESCO
O conceito de Real Edifício de Mafra (REM) veio para ficar, agora que a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) deu forma a uma “velha” aspiração do concelho de Mafra, dos mafrenses, dos poderes e das oposições do concelho.
O conjunto constituído pelo Palácio (convento) Nacional de Mafra integrando a Basílica, o Jardim do Cerco e a Tapada Nacional de Mafra foi inscrito pela UNESCO, no decurso da 43ª sessão do Comité do Património Mundial, na Lista do Património Mundial desta organização, passando assim o país a integrar 17 bens com esta classificação: “Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém em Lisboa, Convento de Cristo em Tomar, Mosteiro da Batalha e Zona Central da Cidade de Angra do Heroísmo nos Açores, 1983; Centro Histórico de Évora, 1986; Mosteiro de Alcobaça, 1989; Paisagem Cultural de Sintra, 1995; Centro Histórico do Porto, Ponte Luiz I e Mosteiro da Serra do Pilar, 1996; Sítios Pré-Históricos de Arte Rupestre do Vale do Rio Côa e de Siega Verde, 1998 /2010; Floresta Laurissilva na Madeira, 1999; Alto Douro Vinhateiro e Centro Histórico de Guimarães 2001; Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico, 2004; Cidade-Quartel Fronteiriça de Elvas e suas Fortificações, 2012; Universidade de Coimbra – Alta e Sofia, 2013; Real Edifício de Mafra – Palácio, Basílica, Convento, Jardim do Cerco, Tapada, Santuário do Bom Jesus do Monte em Braga, 2019“.
Esta ideia teve um impulso decisivo logo no início do primeiro mandato de Hélder Silva à frente da Câmara Municipal de Mafra, tendo beneficiado de contributos da maioria do PSD, da colaboração direta de Elísio Summavielle, ex-presidente do IGESPAR, ex-Secretário de Estado da Cultura e ao tempo vereador do PS na Câmara de Mafra, da colaboração de Mário Pereira, Diretor do Palácio Nacional de Mafra e de Sérgio Gorjão, técnico ao serviço do palácio, bem como, de um grande número de portugueses, de vários saberes e proveniências, nomeadamente técnicos da DGPC (Direção Geral do Património Cultural), funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros, bem como de diplomatas e técnicos a exercer funções junto da Comissão Nacional da UNESCO e junto do Secretariado e da sede da organização.
No decurso das discussões (as únicas a que tivemos acesso) que ocorreram no plenário da 43ª sessão do Comité do Património Mundial, que decorreu no Azerbeijão, onde este processo teve lugar, a generalidade dos delegados que se pronunciaram tiveram ocasião de se referir à qualidade excecional do dossier apresentado por Portugal, no que se refere ao palácio, tendo pedido alguns esclarecimentos (poucos) relativamente ao Jardim do Cerco e um pouco mais, relativamente à qualidade da informação respeitante à Tapada Nacional de Mafra.
Atentemos às recomendações do Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios (ICOMOS), que é a “[…] única organização deste género, que se dedica a promover a teoria, a metodologia e a tecnologia aplicada à conservação, protecção e valorização dos monumentos, conjuntos e sítios. O ICOMOS é uma rede de especialistas e beneficia das trocas interdisciplinares entre os seus membros, formado principalmente por arquitectos, historiadores, arqueólogos, historiadores da arte, geógrafos, antropólogos, engenheiros e urbanistas”, tratando-se, pois, do departamento consultivo de caráter técnico que apreciou a candidatura do REM, tendo emitido algumas recomendações e efetuado alguns pedidos de esclarecimento:
- Efetuar um estudo da paisagem e um inventário cartográfico das características patrimoniais da Tapada para permitir uma compreensão mais completa e detalhada da evolução histórica do território da Tapada, incluindo a distribuição das áreas funcionais, do sistema hidráulico e dos seus elementos, da seleção de plantas, bem como, das alterações nas espécies e na sua disposição, de modo a reforçar e melhor fundamentar a proposta para a inscrição;
- Utilizar a informação acima para reforçar a gestão da dimensão cultural da paisagem da Tapada;
- Criar um sistema de gestão mais robusto que identifique tarefas e compromissos explícitos para cada membro da Unidade Operacional e que integre os vários planos e programas num instrumento de gestão elaborado em conjunto, baseado numa visão unificada para toda a propriedade.
Recomendações adicionais:
- Criar um programa de conservação com prioridades claras e fontes de financiamento para toda a propriedade, envolvendo todas as instituições gestoras responsáveis.
- Solicitar à Escola de Armas que efetue uma revisão da utilização do terreno que ocupa, em coordenação com um arquitecto paisagista, com o objectivo de melhorar a configuração do palácio, satisfazendo simultaneamente as necessidades funcionais, na sequência das alterações ocorridas em 2013.
- Encorajar o Município a desenvolver um plano de conservação para o Jardim do Cerco, estabelecendo objetivos de longo prazo para sua gestão.
- Encorajar todas as partes relevantes envolvidas, a elaborarem uma estratégia e a realizarem investigações arqueológicas na Tapada, de modo a esclarecer o seu desenvolvimento histórico enquanto espaço multifuncional.
Assim, não escapou aos peritos a descoordenação funcional de que o REM padece. O exército, a DGPC, a paróquia, a autarquia e a economia local e nacional não se mobilizam aqui de um modo organizado, coordenado e eficaz. São muitas capelinhas e muitos os “santinhos” a contentar, muitos interesses a satisfazer, resultando naquilo que tem acontecido ao longo dos tempos: o descalabro é rei anos a fio, descalabro, desinteresse e apatia. De repente, os deuses congregam-se num improvável esforço e o palácio é pintado, a Tapada sofre algumas beneficiações, os órgãos são reabilitados e os carrilhões voltam a tocar. Uma dezena de anos depois, o descalabro, o desinteresse e apatia regressam, obrigando-nos a gastar mais uns milhões, dando-nos mais uns anos de exaltação, após o que tudo volta ao mesmo, numa sucessão patológica de caráter ciclotímico. Como mero apontamento desta realidade, não será fácil de esquecer o dia em que, durante as comemorações dos 300 anos, foi possível assistir ao lançamento de fogo de artifício a partir da cobertura do palácio. De quem terá partido tão brilhante ideia, saberemos algum dia?
Coordenação precisa-se. Para continuar a reabilitar, para pintar o exterior do Palácio, para reparar o seu interior, para dignificar o Jardim do Cerco, para transformar a Tapada num parque ecológico funcional e moderno, virado para o turismo, para o ensino e para a investigação (sendo que, tudo terá de ser dimensionado para a verdadeira realidade daquele espaço, sem o menosprezar, mas também sem querer ver nele, aquilo que ele, na realidade, não é. Por outro lado, terá de chegar rapidamente o tempo em que a Tapada Nacional de Mafra comece a ser gerida com menos polémica, menos conflitos laborais e mais eficácia).
A existência de um aquartelamento militar enquistado (histórica e tradicionalmente) num espaço monumental, ecológico, turístico e paisagístico, levanta problemas, embora também tenha algumas vantagens – o fato do espaço estar ocupado e funcional terá/teria algumas vantagens, desconhecendo-se, no entanto qual é o real estado de conservação da totalidade do espaço ocupado pelos militares.
Estes problemas deverão ser encarados com frontalidade e olhados por um prisma de modernidade e de funcionalidade. Os espaços deverão estar preparados para receber todo o tipo de visitantes (escolas, turistas nacionais e estrangeiros, investigadores, visitantes deficientes, grupos organizados), com comodidade, com informação disponível e com guias especializados habilitados para lidar com os públicos. Deve ser possível aceder facilmente aos três espaços, quer através da utilização de um bilhete único que permita beneficiar de programas capazes de permitir a fruição sucessiva do Palácio, da Basílica, do Jardim do Cerco e da Tapada, sendo que esta terá, necessariamente, de vir a dispor de um acesso direto a partir da vila de Mafra.
Finalmente, a estrutura que vier a coordenar o REM terá de procurar estudar a possibilidade de explorar sinergias entre este espaço e o eixo turístico Lisboa-Sintra-Cascais, sem o qual, nem o REM, nem a futura instalação do Museu da Música em Mafra, terão o sucesso que merecem e de que necessitam. A procura de fontes de financiamento (aqui, as empresas locais terão oportunidade de mostrar o que valem), a par de uma promoção inteligente e equilibrada, constituirão também tarefas cruciais que competirão a aquela estrutura funcional (despartidarizada e sem acesso a lobbies e a clientelas locais).
Paulo Quintela
Diretor do Jornal de Mafra