Concelho de Mafra no Dia Nacional dos Centros Históricos
O concelho de Mafra, na verdade, é constituído por duas históricas centralidades urbanas – Ericeira e Mafra.
A Ericeira é (foi) fundamentalmente uma vila piscatória, tendo servido, em tempos, de refúgio a gente abastada (gente que voltou em força), que por lá fez história. A vila serviu também de ponto de fuga para o último rei de Portugal, sendo essa, talvez, a sua história com mais História. Em termos históricos pouco mais haverá para dizer da Ericeira, para além da (importante) história e das histórias das suas gentes, da labuta daqueles que, com imensas dificuldades, dentro da água e fora dela, por ali fizeram as suas vidas – sobretudo, numa luta diária de amor-ódio com o mar. Vieram depois outros tempos, com eles, a massificação do turismo, que teve o seu início nos finais dos anos 60 do século passado e que nos dias correm, começa já a ser razão de queixa de alguns jagozes mais antigos, aqueles que sentem a sua terra “ocupada” por gentes de outros linguajares.
Nos últimos meses assistiu-se na Ericeira a um lavar de cara. As ruas estão mais luminosas, as paredes mais limpas, pintadas de fresco com as cores que foram as de outros tempos, e que hoje nos lembram que a Ericeira tem uma história que se plasma nos seus azuis e nos seus brancos, na sua arquitetura com símbolos ligados ao mar e ao peixe. Uma vila que hoje já se assume como fundamentalmente turística, um turismo alavancado pela indústria do surf, com tudo o que isso tem de bom e de menos bom. Os preços dos espaços dispararam e assiste-se à desertificação do seu centro, como aconteceu em muitos outros lugares, e como está paulatinamente a acontecer, por exemplo, na vila de Mafra, embora por razões bem diversas.
Mafra é a única localidade do concelho que dispõe de um centro histórico consolidado, no sentido monumental do termo. Se a Ericeira é hoje sinónimo de turismo e de surf, Mafra responde, quase exclusivamente, pelo nome do Palácio Nacional de Mafra.
A vila de Mafra sem o seu improvável e excêntrico palácio-convento, provavelmente, seria pouco mais de que um lugar de passagem para o mar, para a Ericeira. Mas não é assim. Mafra tem um centro histórico, um centro histórico que tem sofrido “recauchutagem” sobre recauchutagem, à medida que um edifício ameaça desmoronar-se, à medida que as estatuetas se vão desprendendo dos edifícios, muitos deles só ocupados ao nível do solo, e outros nem isso.
A quantidade de edifícios abandonados e decadentes na frente do palácio, é verdadeiramente pornográfica.
O edifício onde funcionou a Mafrense e que foi a primeira sede de candidatura de Hélder Sousa Silva à Câmara de Mafra, tendo sido recauchutado nessa ocasião, lá está, decrépito, anémico de cor, cruzado por uma rede aérea de fios de comunicações, com portas ao estilo kitsch, à espera que se esfarele uma janela ou que caia uma parede, como aconteceu recentemente, um quarteirão mas adiante, também frente ao badalado ex libris da vila, no edifício abandonado que alojou uma clínica até há pouco tempo – e onde se diz, que irá nascer, frente ao palácio, um hotel de charme.
Na esquina daquele edifício funcionou durante anos uma pastelaria, já encerrada há anos, por ter deixado de assegurar condições de laboração. Encerrou, e encerrada está, vazia, no centro da vila, com um “buraco” no telhado, visível do exterior, que só terá sido reparado quando parte do muro do prédio ao lado desabou parcialmente. Uma estrutura de águas furtadas desabitadas, de janelas abertas, por onde entram ventos e chuvas, pode também ver-se no topo de num edifício, perto já do banco Santander.
No outro lado do Terreiro, desabou há já algum tempo, uma estatueta decorativa, caiu na rua, por sorte, sem ter causado danos humanos ou materiais. No topo do Terreiro, bem em frente da entrada da basílica, lá está um belo edifício, também só utilizado no seu piso térreo, cujas madeiras das águas furtadas ameaçavam desmoronar, e que também foi recauchutado, pouco tempo depois da primeira vitória do atual presidente da edilidade.
Para o interior da linha fronteira ao palácio, a situação não é menos calamitosa, com edifícios desabitados, frequentemente com matos nos jardins de outrora. Ainda no centro, a Rua Moreira é outro exemplo de abandono e de recauchutagem paisagística, com fachadas emparedadas, com aquelas que se vêem em alguns bairros degradados.
Na Avenida Movimento das Forças Armadas e nas suas redondezas, nomeadamente na Rua do Canal, onde o descalabro chegou a atingir proporções pornográficas, depois da já useira recauchutagem, recentemente começou a assistir-se a alguma reabilitação. Na própria Avenida Movimento das Forças Armadas, na zona mais próxima ao palácio, há três espaços abandonados, um deles com um portão para a avenida, que deixa ver e antever a degradação que se esconde por trás da recauchutagem das fachadas, onde também se adotaram as portas ao estilo arte kitsch.
Já paredes meias com o edifício da Caixa Agrícola, temos um edifício, um badalado e arqueado edifício, que constitui uma ótima apresentação, se quisermos ser irónicos, para o Palácio Nacional de Mafra. Como é que foi possível deixar chegar (permitir que chegasse e que assim se mantenha) um edifício daqueles à estrada da zona mais nobre da vila, à entrada do centro histórico de Mafra, à vista do seu célebre palácio, que deve corar de vergonha quando para lá olha.
A resposta parece simples. Por desleixo, por incúria, pela mesma razão, pela qual foi possível deixar chegar os carrilhões ao estado a que chegaram, deixar chegar os órgãos da basílica ao estado a que chegaram, deixar chegar os edifícios fronteiros ao palácio, ao estado deslavado e decrépito em que se encontram há anos e anos.
A reabilitação é uma bandeira política capaz de dar votos, e os políticos sabem disso. Em Mafra, a reabilitação, a julgar pela arquitetura dos novos edifícios construídos/reconstruídos no centro da vila – antigo Hotel Castelão, Loja do Cidadão e edifício construído na Avenida Movimento das Forças Armadas, frente à bela arquitetura do edíficio do Turismo – é uma reabilitação qu,e por este caminho irá, paulatinamente, transformar o centro histórico da vila num aglomerado de caixotes retangulares brancos, com alguns tímidos encaixes frontais e com uma componente comum em vidro, que em conjunto, farão lembrar um centro de investigação clínica – o projeto de arquitetura dos três edifícios terá uma assinatura comum? – mas que muito dificilmente colarão com a arquitetura barroca do ex libris da antiga vila, o cada vez mais badalado, e bem, Palácio Nacional de Mafra.
Paulo Quintela
Diretor do Jornal de Mafra