Um sonho de criança
Era uma vez um menino, a quem, como a todos os meninos, um dia, começaram a perguntar:
«Que queres ser quando fores grande?»
A resposta saía pronta e convicta:
«oficial da marinha mercante.»
Esse era um menino que tinha um desejo imenso de navegar, de correr mares e continentes. Um menino que não tirava os olhos do mapa mundo.
As contingências da vida obrigaram-no a seguir outros caminhos. Caminhos de ganhar a vida. Começou a trabalhar com tenra idade. Foi à tropa. Formou família. Teve filhos. As obrigações tomaram conta dele.
Tinha que haver sempre um pão na mesa. A roupa limpa. A cara lavada. Caminhar sempre de cabeça erguida. Um secreto sonho continuava, no entanto, a viver nele: conseguir, um dia, correr mares e conhecer outras gentes, outros mundos.
Também, quando foi para as escolas técnicas, lhe foi feita a eterna pergunta num questionário. A resposta, desta vez escrita, foi a mesma. O mar vivia nele.
Quando andava numa escola na baixa adorava ir ao Terreiro do Paço ver passar os barcos. Muitas vezes, quando tinha uns trocos a mais, apanhava um cacilheiro, ia até à outra banda e regressava. É tão grande o nosso rio que quase sabe a mar.
Quando ia com o seu Avô almoçar ao Ginjal era uma festa. A rota Belém, Porto Brandão, Trafaria era já um cruzeiro. O barco para o Barreiro uma longa travessia.
Gostava sempre de ir na parte aberta dos barcos. O vento a varrer-lhe o corpo. Alguns salpicos que o enchiam de júbilo. Era, quase sempre, o último a sair do barco. Demorava o mais que podia aquele prazer.
Um dia, os navios grandes que faziam a rota de África, começaram a ser navios tristes. Navios vestidos de luto. A guerra colonial quase ia matando o seu sonho secreto. Num navio daqueles nunca iria navegar. Olhava para aqueles barcos brancos e só via panos negros. Mulheres de luto. Choros e agonias. Aqueles barcos, que antes adorava, começaram a ser um pesadelo.
Até que chegou uma madrugada que lhe encheu a vida. As pessoas vieram para as ruas e avenidas. Gritavam liberdade e o sonho ganhou nele nova vida.
Quando os bancos se começaram a comer uns aos outros, como quem comia sobremesas, numa loucura sem nome, achou que estava a mais, que os trinta e seis anos de trabalho já chegavam e decidiu reformar-se. Foi então, com os filhos já quase prontos, que começou a navegar a sério.
Cavalgou já muito mar. Todos os Oceanos e Continentes. Mares com nome estranho. Ilhas que nunca esperou encontrar. Paraísos e decepções. Já abraçou gente que nunca esperou abraçar. Sentiu-se invadido por uma aura de aventureiro e descobridor. Fez da errância uma vontade. Do correr mundo um desígnio. Voou.
Acho que este menino só irá parar quando as forças lhe faltarem. Sei que continua a gostar de cavalgar ondas. Cinco ou seis dias, só de mar, são uma bênção para ele. Só o mar e ele numa conversa única.
Talvez o seu grande sonho seja, afinal, ser pirata. O seu eterno ídolo Sandokan, o célebre tigre da Malásia.
«Desta vez demoraste menos.»
Voz de Isaurinda.
«Sabias que assim seria.»
Respondo.
«Contigo nunca se sabe. Essa cabeça não arrefece. Ouve lá, só aqui para nós, esta história não é a tua?»
De novo Isaurinda.
«É a história de muitos de nós. Uma história onde cabe muita gente.»
Eu de novo.
«Está bem, não me convences…»
Isaurinda que responde e vai, o pano na mão.
Jorge C Ferreira Set/2017(136)
Que giro, ir atrás dos sonhos, bem à Jorge.
Beijinho.
Sonhos de criança que nos acompanham como uma miragem. Ao longo da vida o fio condutor vai alterando a rota do sonho, umas vezes tão perto de lhe tocar, outras vezes tão longe.
O importante é que qualquer que seja o rumo, se viva cada situação com gosto, com entrega, com partilha, com amor, com vontade de aprender e de viver.
A viagem que fez ao longo da vida por caminhos diversos e tão diferentes dos que sonhou, fez de si o grande marinheiro que é hoje e olhar o mundo da forma que o faz. Espero poder ler por muito tempo os seus textos, as suas crónicas de grande mestre e acompanhá-lo nas suas viagens.Obrigada Jorge.
A Isaurinha conhecê-lo bem.
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Obrigado Eulália. Vou tentar não a desiludir. Espero ter força para mais mar. Abraço.
Cumprindo o sonho, poeta te fizeste, um viajante que ainda e sempre se espanta e pasma com o belo, um artesão da palavra, lapidando-a de todas as arestas. Pelos teus olhos corremos mundo. Bem hajas por partilhares essa aventura.
Obrigado Ana. Enquanto os olhos me deixarem, buscarei sempre o belo. Abraço
Creio que a Isaurinda conhece bem o menino protagonista desta estória. O menino que sonhava abraçar mares. Também eu tenho fascínio pelo mar. Quando nasci os meus olhos abriram-se para a Ria Formosa, através de umas janelas. O percurso estudantil trouxe-me até á capital. Tomando outro atalho, até ao sítio onde vivo. Subindo ou descendo o parque, entre poetas e uma vegetação que ainda nos oferece verdes e flores de cores variadas, posso admirar a sua beleza. O rio tão grande. !! Como compreendo esse sonho que nasceu consigo. Como marinheiro ou pirata querendo abraçar o mar!!E agora que o tempo assim o permite, corra, corra atrás desse sonho. Diga á Isaurinda para ter paciência. É mesmo assim. E não deixe de nos contar !!! Obrigada por mais este texto. Gostei muito.
Obrigado Isabel. Temos de correr sempre atrás dos sonhos. Só assim a vida faz sentido. Abraço
E de toas as viagens nos vai falando
“Um homem do mar com diario de bordo”
Aprender com outros povos
Beber outras culturas
Vestir vestes de outras vestes
Concretizando um sonho de menino
Horizontes alargados
Viver de quimera em quimera
Sonhos que se tornam realidade
Obrigada,Jorge
Lindo texto!!!
Obrigado Maria Helena. A busca sempre na mente. Adorar o inesperado. Abraço
Querido Jorge, meu/nosso mestre/amigo,
Ontem, dia da publicação desta excelente crónica, ao lê-la emocionei-me, depois, mais tarde voltei cá para tentar comentar… e voltei a ficar sem palavras, por causa das tuas, principalmente, mas também pelos belíssimos comentários que te fazem e que tantas vezes me revejo neles também. Tenho o meu cantinho reservado para ti, às segundas feiras. É num ritual aconchegante que me sento a ler-te, a aprender-te , a viajar contigo. Tens semanas que estás lá sentado, junto a mim, há outras que viajo contigo num imenso azul de outros sentires. E aprendo tanto. Sempre.
É nas minhas humildes palavras que te agradeço por nos contares “um sonho de criança” , que afinal, é tanto, de uma ou outra forma, um sonho de todos nós. Todos nós nos revemos sempre em algo que nos descreves. Como tu próprio dizes à nossa querida Isaurinda “É a historia de muitos de nós. Uma historia onde cabe muita gente”. Por isso te aguardamos sempre como se uma nova madrugada nos viesse libertar.
Por falar na Isaurinda, “desta vez demoraste menos”, ainda assim, o suficiente para sentir-mos a tua falta.
Um grande abraço, meu/nosso “marinho de sonhos e realidades “
Obrigado Cristina. Tão bom ler o qu escreves. És uma amiga generosa. Abraço
Uma narrativa linda sobre a vida autobiográfia, individual, mas também de todos. Obrigada pelo texto bonito que a nós nos faz sonhar e inspira
Obrigado Isabel. Não calemos os sonhos. Abraço
Gostei tanto, mas tanto Jorge! Vamos sempre a tempo de perseguir os nossos sonhos e o Jorge é prova dissso!!!!!
Depois,essa maneira deliciosa como conta aa suas aventuras é maravilhosa! Obrigada por isso!
Espero continuar por muito tempo a deliciar-me com as suas crónicas.
Bias viagens e aguardo as próximas partilhas!
Um abraço
Obrigado Raquel. Que os sonhos se cumpram. Que a vida se faça. Abraço
Que história tão bonita,maravilhosa. Agora pode concretizar o seu sonho, viajar pelos mares …. Obrigada amigo
Obrigado Esmeralda. Navegar é uma ânsia para mim.
Olá amigo Jorge. Que bom que soube parar a tempo para começar a cumprir os sonho de menino. Que bom que houve aquela madrugada que o livrou a si e muitos outros de embarcarem nos negros navios. Continue a fazer as suas maravilhosas viagens. Obrigada por partilhar isso connosco. Até para a semana.
Obrigado Maria da Conceição. Sim, a importância de uma madrugada. Até para a semana espero.
Meu querido Sandokan, donde vieste para entrar na minha casa? Adorei, amigo Jorge. Mais uma vez a tua cinematográfica escrita me levou a caminhar contigo. Comecei por ter de recuar uns anos para te poder acompanhar como o menino que queria da vida navegar, correr mares e continentes. Devias ficar bem com a farda da marinha, mas tiveste de ” correr ” o percurso de rapaz, neste país cinzentão como ” mandava a lei “. Com mais ou menos diferenças eram muito semelhantes, porque a originalidade também não caía muito bem aos poderes de então.
Nesse tempo, o menino que eras cumpriu o que se esperava de um rapaz para se fazer homem. E tu cumpriste, enquanto o teu espírito aventureiro te levava, sonhando, de uma margem à outra margem do rio da tua Cidade, sempre pensando que atravessavas o mar, um amor teu a quem sempre foste leal. Às vezes, com o avô, ( não são para isso que os avós existem? ), atravessavas esse imaginado mar e, na outra margem do Tejo, pisavas outros mundos. Crescias, fizeste-te homem e correste o risco de viajar em barcos feios com passageiros tristes. Mas veio aquela madrugada que Sophia prendeu num poema, enquanto a própria poesia enchia as ruas. E como ambos vivemos em grande alegria esses tempos. Já algo nos juntava e nunca nos vimos. É então que continuas marinheiro e podes dar corpo ao desejo. E para junto do mar irás sempre, conhecendo terras e gentes e em todas usufruindo do novo, do diferente, aproveitando tudo o que te faz crescer e seres outro, sendo o mesmo.
E destas viagens nos vais dando conta e contigo viajamos. A Isaurinda, com o seu pano, volta a questionar-te e a tua resposta é verdadeira: ” é a história de cada um de nós, uma história onde cabe muita gente “.
Obrigada Jorge, meu/nosso, amigo. Mais uma vez viajámos por mares e Terras e assim nos encontramos diariamente. Tanta gente a esperar-te, como se o navio aportasse aqui e onde mais escreves e contas histórias, tuas e de todos nós. E é assim que te gostamos.Beijinhos muito amigos, Jorge, marinheiro de sonhos e realidades.
Obrigado Ivone. Que bom é escrever e saber que vou ter um comentário teu, Este de tão belo chega a emocionar, Tu que sabes tão bem marear a vida e escreves com a ternura nas mãos. Obrigatório ler-te.
Paixões que não morrem. O fascínio do Mar. Os lugares. Os afectos. Sonhos que nunca terminam. Vais continuar a cavalgar muitas mais ondas. Serás sempre do Mar!
Obrigado Maria. Sim, somos dos afetos. Somos do mar. Seremos sempre. Abraço.
Que história deliciosa.Sempre a navegar por mares desconhecidos,haverá algum por descobrir para adicionar a todas as milhas já navegadas?
Recuando ao meu desejo de menina, acho, que sempre me vi de cores berrantes andando descalça pelo deserto.Cigana,como eu queria dançar à roda da fogueira…até que uma cigana uma vez ao ler-me a sina se arrepiou e chamou-me “filha da lua”Todos nós com sonhos e encantos por escrever.Fico feliz por este regresso. Bj meu querido amigo
Obrigado Célia. “Filha da lua”, minha amiga de sonhos. Que cumpras os teus inteiros. Abraço.
Tão bonita a sua história! O mar será seu companheiro eterno, não tenho dúvidas.
Um beijinho
Obrigado Madalena. Acho que sou do mar, sempre assim me senti, Outro beijinho.
Que bonita história, quase me revi nela, não por querer navegar, mas sim, por sonhar ser o que não fui, mas que agora sou, já reformada também! Obrigada por me fazer sonhar outra vez, por me fazer voltar ao que não fui, mas que hoje sou!
Isabel
Obrigado Isabel. Cumprir os sonhos. Para nos cumprirmos. Só assim faz sentido, Abraço.
Obrigada pelas suas palavras
Obrigado, eu. Abraço.