De ontem e de hoje – O racionamento por Licínia Quitério Eu era muito pequena quando a guerra acabou, mas lembro-me bem do “racionamento”, essa palavra que andava de lar em lar, de boca em boca, e que para mim constituía um divertimento diário. Era-me então permitido recortar uns quadradinhos de papel azul-claro onde estava inscrita uma data e um qualquer número que queria dizer “pão”. A minha mãe dizia-me quantos quadradinhos eu devia entregar ao padeiro que nos trazia o pão à porta. Lembro-me do boné dele, do…
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Crónica de Licínia Quitério | Um laço vermelho
De ontem e de hoje – Um laço vermelho por Licínia Quitério Vinha com vontade de falar, de ter quem lhe ouvisse a fala, que não a interrompesse, e sobretudo não desse opiniões sobre o que ia falando. Foi o que eu entendi ao vê-la chegar ao café, puxar a cadeira e sentar-se, o corpo paralelo ao tampo da mesa quadrada. Não nos conhecíamos a não ser daquele lugar de gente rotineira, de vizinhanças vagamente cúmplices, de histórias de bairro sem grandes rasgos, de um ou outro negócio clandestino,…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | É a vida…
De ontem e de hoje – É a vida… por Licínia Quitério Agora tem tempo, não é como dantes, sempre numa corrida, trabalho, trabalho, trabalho. Anos, muitos anos de dureza e pouco ganho. Já quase a despedir-se para a reforma, o corpo dorido, nenhuma esperança em melhor sorte, desabafava: — Quando Deus quiser que me leve, que já vi tudo o que há para ver, A preparar-se para os últimos anos da viagem, aconteceu o milagre, que ainda acontecem, segundo ele afirma de prova provada. A mulher muito…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | Os botões
De ontem e de hoje – Os botões por Licínia Quitério A minha amiga refere-se amiúde ao seu tempo de África, o tempo em que foi imensamente feliz, quando ninguém pensava em ter de sair de lá, às pressas, rejeitada por um mundo, mal recebida por outro, uma folha da História a ser virada e ela feita protagonista com outras centenas de milhar. Hoje, muito tempo passado, descreve com serenidade, para quem merece ouvir, cenas do que viveu e outras que por certo imaginou. Diz das alegrias da…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | Leituras
De ontem e de hoje – Leituras por Licínia Quitério Aprendi a ler muito cedo, em jeito de brincadeira, e aos quatro anos já lia com fluência, para admiração de alguns amigos lá de casa que aconselhavam os meus pais a “não puxarem muito pela menina, coitadinha”. Eu brincava com as letras e mal sabia que a brincadeira iria ficar comigo até à já grande velhice. O alfabeto naquele tempo tinha mais três letras que depois foram expulsas – o K, dito capa, o Y, chamado igrego, e…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | Emigração
De ontem e de hoje – Emigração por Licínia Quitério Era Abril e a década contava-se por sessenta. Paris era uma ideia, um desejo, um encontro previsto. Eu trabalhava para pagar os estudos, arduamente, num afã que a juventude permite. A dureza das muitas horas de trabalho adiava, inviabilizava, destruía sonhos de pequenos vícios, pequenos prazeres, mas a força de quem tem uma vida a começar não admite desistência. Havia quem só estudasse, quem não tivesse prazeres adiados, quem navegasse em águas mornas, como se natural fosse essa…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | O calor
De ontem e de hoje – O calor por Licínia Quitério Vem a propósito do calor. Não um qualquer calor de Verão. Um calor perturbador, ameaçador, persistente, viscoso, que pede líquidos e os bebe de um trago e de retorno dá mais sede e mais seca e uma moleza de mistura com uma raiva que escalda a mente e a pele desnuda. As mulheres, na esplanada frente ao rio, sonhando com mares distantes e muito azuis que lhes tinham contado serem lugar de férias de afortunados e de…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | Conta-me uma história
De ontem e de hoje – Conta-me uma história por Licínia Quitério Bendito e louvado, o meu conto está acabado. Com esta ou outras fórmulas tradicionais, podem fechar as suas histórias os contadores, os conta-contos, esses andarilhos que percorrem o país a desenterrarem tesouros para os salvarem do esquecimento e depois os partilharem com adultos e crianças, em praças, em escolas, em bibliotecas. Recolhem histórias, às vezes dão-lhes novas roupagens e depois contam-nas, com vozes bem moduladas e gestos expressivos. Neste nosso mundo de desalentos, será sempre bom…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | Anos 50 do século XX
De ontem e de hoje – Anos 50 do século XX por Licínia Quitério Em Lisboa, no 34 da Avenida da República, viviam as velhas amigas que há muitos anos, tantos quanto somam três gerações bem contadas, emigraram para a cidade, levadas pelos pais, em busca, como todos os deslocados deste mundo, de melhor fortuna. Moravam na grande cave do prédio que servia de habitação de porteiro, com muitos compartimentos e um longuíssimo corredor. Só menos de metade da casa recebia luz do exterior, através de pequenas janelas…
Ler maisCrónica de Licínia Quitério | Conversa de mulheres
De ontem e de hoje – Conversa de mulheres por Licínia Quitério A Matilde chegou em passo mais estugado do que era seu hábito. Vem sem óculos. Mal chegou explicou: “Estás a estranhar qualquer coisa. Isso mesmo. Larguei os óculos. Decidi-me por lentes de contacto. É hoje o meu primeiro dia de olhos novos. Estou a gostar. Diz lá se não pareço mais nova. Não te rias, qual é a mulher que gosta de envelhecer, qual? Enquanto puder vou disfarçando os anos. Disfarçando apenas, que eles vão somando,…
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