Alice Vieira

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UMA QUESTÃO DE MATEMÁTICA
Alice Vieira

 

O Lobo Antunes tem uma crónica (extraordinária, como todas as suas crónicas, embora ele não goste que lhe digam isso…) em que fala do merceeiro que fornecia a casa dos pais e tinha uma maneira muito peculiar de fazer as contas do mês. Sentava-se em frente da dona da casa, escrevia as parcelas, e depois ia contando, “três e dois, cinco, e mais sete, doze, e vai um—mas como é para a senhora vão dois…-e mais dois, quatro…”, etc.

A primeira vez que li esta crónica lembrei-me logo da Raquel.

A Raquel era uma empregada que eu tinha nos tempos pré-históricos em que vivia na Ericeira (e que saudades da minha casa na rua de Baixo…)

Eu saia muito cedo para o jornal, o meu marido trancava-se a escrever, as crianças eram muito pequenas e brincavam no terraço. A Raquel chegava às 10 da manhã e era suposto sair ao meio dia. Ou seja: quando chegava, eu já não estava; quando saía, eu ainda não tinha vindo. O trabalho não era muito, por isso duas horas, quatro vezes por semana, era mais que suficiente.

Ao fim de cada semana ela ia lá a casa para fazermos contas.

E lá vinha o discurso do costume:

— Trabalhei das 9 ao meio dia, duas horas, como está combinado. Mas a senhora sabe como eu sou despachada. Eu não faço por isso, juro que não faço, mas a verdade é que sou mesmo muito despachada… Eu despacho em duas horas aquilo que as outras despacham em quatro! Por isso, apesar de eu ter trabalhado duas horas, a senhora paga-me quatro, que era o que pagaria a outra qualquer que não fosse tão despachada como eu. Acho que está certo.

Era de uma lógica imbatível.

Ela ria, eu pagava, e vivíamos em paz.

Até que circunstâncias da vida (e sobretudo o facto de, ainda sem autoestrada, eu levar todos os dias da Ericeira ao jornal, uma hora e três quartos, e o mesmo no regresso) fizeram-nos largar a Rua de Baixo e ir viver para Lisboa.

Durante anos (o 25 de Abril, o PREC, o trabalho sem horários, os miúdos já na escola, embora as fotografias para a escola ainda tivessem sido tiradas na Foter, da Rua Direita…) não voltei à Ericeira.

Mas um dia, já nem recordo a que propósito, fui lá uma tarde.

Já tinham passado alguns anos—mas as mudanças, felizmente, não tinham sido muitas. Lembro-me de estar abancada no Central, a pôr a escrita em dia, como está este, como está aquele, quem morreu e quem não morreu, etc, etc.

A dada altura passa rapidamente pela esplanada uma mulher, mais velha que eu, e que eu não reconheci, até porque nem tinha olhado bem para ela.

O Sr. António sorriu, e diz-me:

–Não se lembra dela? É a Raquel, que foi sua empregada.

E logo continuou, o sorriso a aumentar:

–E olhe que ela está sempre a dizer bem de si! Diz que se não fosse a senhora nunca ela podia ter comprado o café que tem lá para o norte, nem a mercearia em Sto. Isidoro!

Não sei porquê dei comigo a recordar “três e dois, cinco, e mais sete, doze, e vai um—mas como é para a senhora vão dois…”

Um dia destes hei-de perguntar ao Lobo Antunes se por acaso o merceeiro da mãe não teria uma filha chamada Raquel.

 



Pode ler (aqui) as crónicas quinzenais de Alice Vieira