De ontem e de hoje | DE AMICITIA
por Licínia Quitério
Pois é. Está a chegar o dia de entregar mais um texto para o DE ONTEM E DE HOJE, título de que me servi para abranger crónicas que vou escrevendo sem qualquer linha cronológica, num andar para a frente e para trás que assim se fazem os nossos dias a que chamamos presente. Se me ponho a falar de ontem, eu que já tenho um ontem tão longe, tão distante, que às vezes me custa avistar lugares e gente e vozes e tudo e tanto que lá atrás nos vai fazendo o tempo de vida, arrisco-me a tornar inverosímeis e desinteressantes os relatos de peripécias de tempos idos. Se trago para o papel as histórias da semana, tenho de ter o cuidado de preservar alguma veracidade embora fantasiando como gosto e quando julgar a propósito, não citando pessoas concretas, não opinando em prejuízo de alguém. Claro que isto são limites que a mim própria imponho, sem jurar que nenhuma vez os tenha ultrapassado ou torpedeado.
Bom, deixando este discurso sensaborão e eivado de alguma empáfia, vamos lá ao que interessa. A crónica anterior era sobre as tristezas do mundo que, como sabemos, infelizmente persistem e encorpam, servindo de pano de fundo dos nossos pensamentos recorrentes, privando-nos de alegria, de um merecido bem-estar.
Hoje quero falar da amizade, da que se instala nas nossas vidas e nos acolhe com a pureza que, ao contrário, o amor, por sua natureza misteriosa, é capaz de ignorar. Vem isto a propósito de uma velha amizade que me visita e promete proximidade e conversa. Há meio século ela era uma menininha bonita que conheci ainda nos seus passinhos hesitantes pela mão da mãe. Muito ela cresceu e viveu, muito eu vivi e envelheci e sempre entre nós houve interlúdios de abraços apertados, de lagriminha ao canto do olho, de resumos breves, muito breves, do que entretanto se passou na vida dela, na minha, no mundo. Porque esta amizade foi prolongada no tempo e nunca desprezada, a história entre nós continua, sem grandes saltos, como se o anterior capítulo tivesse ocorrido ontem, ou no mês passado, e afinal anos foram passando sem nos vermos, mas nunca apagando os velhos retratos do que fomos uma para a outra. Agora que os nossos maiores amigos comuns nos deixaram, não precisamos falar deles, porque eles estão invariavelmente presentes nas nossas expressões, nas nossas emoções. O passado passou, mas o melhor do que foi em nós enraizou e persistiu.
E conversámos do presente, do dia anterior, deste e daquele, e rimos e troçámos e barafustámos, como sempre fizemos, desde que ela era uma jovem e nos sentávamos no chão da sala, com gestos soltos, palavras soltas. Era assim, não era, talvez eu já esteja a pintar cenários de exagero, por bem, só por bem, por culpa da amizade.
Licínia Quitério
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.
Só mesmo a Licínia Quitério para falar da Amizade com tanta força e sensibilidade. é sempre maravilhoso ler o que escreve.
Clara