Crónica de Jorge C Ferreira | Mudanças

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
Mudanças

 

O desgaste, o desbaste, o engate. A vida solta dos tempos em que nos sentíamos imortais. A rebeldia, as atitudes provocatórias, a provocação feita amor. O amor que nascia e muitas vezes morria no próprio dia. Momentos únicos, momentos vibrantes, o impensável que acontecia. Casas desconhecidas, camas de uma só noite. Noites imensas e inesquecíveis. Manhãs de camas desfeitas, lençóis enrodilhados, os despojos da noite numa bênção rasgada. Garrafas, copos e velas. Os incensos, os cheiros intensos. Os cinzeiros e as beatas, a cinza do pecado. Um vinil calado no gira-discos.

Quando as manhãs acordavam, ainda dormiam os corpos tatuados pelo amor. Tatuagens recentes de aventuras desencontradas. Pulseiras e anéis trocados. Cabelos enroscados na boca um do outro. As marcas dos lábios, a cor do batom, a cara dele sobre o corpo dela. A nudez do descanso dos guerreiros do amor desejado. Mais um pouco e outra noite que se aproxima. Outro tempo. Outro amor. Loucos eram os tempos. Louca era a vida. Do vestir ao andar, todos os passeios eram poucos para caminhar. Todas as danças poucas para cansar.

jcferreira livro

As músicas da época, as guitarras, o som das baterias, as vozes roucas de cantores inebriados por múltiplas razões. Um cigarro entre as cordas duma viola. Um cheiro que nos encantava, como as cobras são encantadas por o som das flautas tocadas por tocadores especiais. As praças da  liberdade inteira, um mundo deserdado que herdou uma mística especial. As casas de toda a gente. O perigo que se ignorava. O bem querer e o bem sofrer. O bem amar. A última carta. A última jogada.

Os relvados imensos. O adormecer junto ao lago grande. Os esquilos a subirem as árvores. Os barcos a remos e uma senhora já com uma certa idade que todos os dias nadava naquelas águas como se estivesse numa piscina de água quente. Corpos abraçados e beijos de entusiasmar estádios. Jogos que ninguém achava perigosos.  Perigos que eram ignorados. Os caracóis de cabelos louros e um pássaro com uma folha no bico. A extrema fragilidade da vida que  ninguém queria admitir.

Foi o tempo mais livre da pouca liberdade daquele tempo. Gente afinal tão frágil e que vivia como se neles vivesse toda a vida do mundo. Não viam o que estava à sua frente e tão perto deles. Os que se foram perdendo pelo caminho. A falta que eles lhes fizeram. Essa psicadélica maneira de ver o mundo.

Alguns dos que morrerem aos 27 anos:

Brian Jones;

Jimi Hendrix;

Janis Joplin;

Jim Morrison;

Pete Ham;

Jean-Michel Basquiat;

Kurt Cobain;

Amy Winehouse;

Tanto talento desperdiçado, tanto futuro por conhecer. Gente única que fazia sonhar através da sua mágica criatividade, da sua energia. Energia que se esgotou num momento inesperado, por vezes, de um modo triste e que fez chorar meio mundo. Lágrimas que muitos pensavam já não ter e, no entanto, caiam grossas nos corpos que  abraçavam.

Aquela serpentina de água continuava a encantar as pessoas. Que continuavam a amar deitar-se sobre aquele tapete verde.

Até um dia. Há sempre um dia. “Hasta Siempre.”

«Que raio de texto! Tanta coisa para falar e lá vêm outra vez estas coisas.»

Fala da Isaurinda.

«São passagens de um tempo que foi importante. Um tempo em que muita coisa mudou.»

Respondo.

«Pois, eu sei. Algumas mudaram de forma exagerada. Coisas que, em alguns casos, tiveram consequências tristes.»

De novo Isaurinda, e vai, com um ar desconfiado.

 

        Jorge C Ferreira Dezembro/2024(458)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n. 1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor publicou as seguintes obras: A Volta à Vida à Volta do Mundo (Crónicas de Viagem) Editora Poética (2019) Desaguo numa Imensa Sombra (Poesia) Editora Poética (2020) 60 Poemas mais um (Poesia) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.I) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.II) Editora Poética (2024) Participação em Antologias: A Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence (Poesia) Antologia Luso-Francófona Editora Mosaico das Palavras (2018) Poetas do Reencontro (Poesia) Antologia Galaico-Lusa Editora Punto Rojo (2019) A Norte do Futuro (Poesia) Homenagem poética a Paul Celan Editora Poética (2020) Sou Tu Quando Sou Eu Homenagem À Amizade (Poesia) Editora Poética (2021) Água Silêncio e Sede Homenagem Poética a Maria Judite Carvalho (Poesia) Editora Poética (2021) Ser Mulher IV As Palavras (Poesia) Editora Mosaico das Palavras (2021) Nem Sempre Os Pinheiros São Verdes II Editora Poética (2022) Representado na Revista Pauta nº9 com um Poema (2022)

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15 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Mudanças”

  1. Regina Conde

    A crónica que encanta. O tempo que vive dentro de nós. Para chegarmos às ondas e flutuarmos não existia o receio da rebentação. A vontade de viver e darmo-nos por vezes de forma inconsequente. O legado da liberdade. Amigo Poeta de há muito, contigo aprendi a ouvir falar de Poesia. Muito grata por tudo. Abraço grande.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Emocionante o teu comentário, minha Amiga. Que bom estares aqui. A minha gratidão. Abraço grande.

  2. Jorge C Ferreira

    Obrigado, José Luís, meu Amigo, Poeta. Tão reconfortante ter aqui o teu comentário. Quanto aos livros raramente dependem de mim. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  3. Maria Luiza Caetano Caetano

    Sempre maravilhoso, o que escreve. Perfeita descrição desse tempo de liberdade, obrigada por lembrar a alegria da juventude. Há sempre poesia nas suas palavras, querido poeta. O amor é um tema que se adora, nunca cansa e dá um prazer infinito. Mas nada na vida é perfeito. Não esqueço aqueles, que cedo quiseram terminar a caminhada da vida. Foi muito triste.
    Adorei esta pérola, que acabei de ler.
    Grata, meu escritor de eleição. Abraço grande.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Tão belas as suas palavras, querida Amiga. Foram tempos possíveis dentro do impossível. A nossa dor pelos que fomos perdendo. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    Sempre maravilhoso, o que escreve. Perfeita descrição desse tempo de liberdade, obrigada por lembrar a alegria da juventude. Há sempre poesia nas suas palavras, querido poeta. O amor é um tema que se adora, nunca cansa e dá um prazer infinito. Mas nada na vida é perfeito. Não esqueço aqueles, que cedo quiseram terminar a caminhada da vida. Foi muito triste.
    Adorei esta pérola, que acabei de ler.
    Grata, meu escritor de eleição. Abraço grande.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado, Maria Luiza. Já respondi querida Amiga. Outro Abraço grande

  5. Eulália Coutinho Pereira

    Excelente! Bela e nostálgica está viagem no tempo.
    Regressei a um tempo livre sem liberdade. Á juventude irreverente, que hoje nada tinha de irreverente. Aos sonhos, uns realizados, outros por realizar.
    Á música que animava as tertúlias.
    Tantos que ficaram pelo caminho, mas serão sempre lembrados.
    Os amigos que vão partindo, mas que ficarão para sempre.
    Que geração tão especial, a nossa!
    Dois mundos tão diferentes!
    Que privilégio fazer parte desta viagem, tão bem retratada nesta crónica.
    Obrigada Amigo.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália, minha Amiga. Que belo comentário. Fizemos um longo caminho até aqui. Vivemos várias vidas numa vida. Perdemos e ganhámos Amigos. Vamos continuar a ser assim. A minha imensa gratidão. Abraço grande.

  6. Filomena Geraldes

    primeiro foi o cheiro inebriante da liberdade.
    esse odor de mundo que se desconhecia.
    que apelava ao desejo feito amor, nascido
    das tonalidades da música, do efeito dos
    néctares dos deuses, das entregas sem
    tempo nem hora marcada.
    e foram as insanidades, danças até
    ao amanhecer, sorrisos tatuados nas faces,
    o longínquo olhar perdido na batida
    por veredas nunca antes exploradas.

    mas houve quem não conseguisse conviver com a dicotomia do estrelato.
    quem optasse por partir cedo demais.
    muitos foram os palcos vazios,as
    vozes jamais esquecidas, figuras
    que continuam a fazer parte do nosso imaginário.

    e chegou um tempo para dissolver
    as veleidades
    liquefazer as sobrancerias
    que nos tornaram por demais imperfeitos.
    tão cheios de certezas.
    tão atulhados de vanglórias
    tão supostamente altivos.
    ainda há tanto para reaprender,ceder
    resguardar, acautelar, suavizar.
    será que ainda poderemos ser como
    os girassóis?
    seguir as jornadas do sol?
    confiar num mundo mais equitativo, sensato, congruente e bonançoso?

    por isto, meu cronista, sossega as profecias, as gaivotas passageiras
    os vincos agrestes do passado.
    continua a emprestar o teu olhar e o
    respirar às coisas vivas, às garças,
    aos cordões de trepadeiras, às frágeis abelhas, às ilhas flutuantes
    e à geometria dos espaços que
    continuarás a preencher com o
    nome das palavras e os poemas luzentes que em ti imperam e
    perduram.
    aos solários dos diários por ti reescritos!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena, minha querida Amiga. Sempre belo e assertivo o que escreves. Cada comentário uma festa feita Poema. A minha enorme gratidão. Abraço enorme.

  7. José Luís Outono

    Inédito, o desenvolvimento que traças de forma bem apelativa, sobre tempos, momentos e outros argumentos de um olhar, ou viver, ou sentir … ou reflectir.
    Perdoa-me, sinto-me “apaixonado” pela tua excelente criatividade, onde todos os cruzamentos de conjugações circulam numa “mestria” ímpar.
    Os finais de Isaurinda, são um humor perfeito onde desafias reflexões em rasgos de bom humor.
    PERFEITO, estimado amigo, que muito admiro!
    Posso reflectir … será que estou a ler passos de um próximo livro?
    GRANDE ABRAÇO!

    1. Claudina Silva

      Que texto maravilhoso! Saudades desses tempos em que tudo era vivido de forma intensa! Gostei muito. Obrigada Poeta Jorge C Ferreira.

      1. Jorge C Ferreira

        Obrigado Claudina. Obrigado por estares aqui. Tão belo e sentido o teu comentário .A minha enorme gratidão. Aberto enorme.

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado, José Luís, meu Amigo, Poeta. Tão reconfortante ter aqui o teu comentário. Quanto aos livros raramente dependem de mim. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

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