Crónica de Jorge C Ferreira | Ainda o Chile

Crónica

 

Ainda o Chile

por Jorge C Ferreira

 

Depois de Valparaíso a quem fiz jura de amor eterno, La Serena e Coquimbo. Outro Chile. A mesma bandeira.

Pablo Neruda, Gabriela Mistral e Violeta Parra.

Mas qualquer coisa me faz voltar a Valparaíso e ao Cerro Concepcion. Vem-me à memória o Color Café. Esse espaço mítico por onde passávamos todas as noites antes de regressar ao hotel. As paredes escritas. Recados de todo o mundo. Também fotos e guardanapos com amor estampado e lábios vermelhos que encantavam a vida. A música ao vivo. Música de resistência. Música do amado Chile que o assassino Pinochet matou. Ouvimos as canções de Victor Jara, cantor barbaramente assassinado durante o golpe do facínora, e uma lágrima sentida rola até àquele chão de madeira antigo. “A luta continua”. Nunca esqueceremos. O sonho de Salvador Allende continua vivo.


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Estrella.

Assim decidi chamar-lhe. Era a Mãe que orientava aquela casa enquanto os dois filhos serviam às mesas e orientavam o balcão. Ela era a dona daquelas sopas e daquela cozinha de onde saía a apetitosa comida. Sempre me fez lembrar a “Mãe Coragem”. Apesar de ter conversado com ela muitas vezes, nunca soube o seu nome.  Decidi que era Estrella e assim a continuo a chamar porque, para mim, tinha luz própria. Um brilho especial.

Quando saía de trás do balcão e vinha para a sala, tirava o lenço colorido da cabeça. Mostrava então o seu cabelo curto. Cabelo que não sei se era cabelo a crescer ou cabelo assim cortado. Coisa que nunca lhe perguntei. Era um cabelo de que gostava. Dizia bem com ela. Era uma mulher madura e interessante e de fala fácil. Falava sem medo de expor as suas ideias. Uma excelente conversadora. Uma mulher abertamente de esquerda. Toda aquela casa cheirava a revolução. Estrella também podia ser La Pasionaria. Para a Isabel este local era único. Percorria toda a casa. Encontrava-se com toda a gente. Espreitava todos os recantos. Estrella gostou de nós de imediato, passou a vir falar connosco e à nossa mesa onde discutíamos tudo, essencialmente política. Nós a querer saber o máximo ela a explicar as suas ideias e o seu amado Chile. Apesar de tudo, devíamos ter falado mais com esta mulher com o coração do lado certo da vida.

Tantas saudades do Color Café.

Tantas saudades de Estrella.


Agora é mar, só mar, e sabe tão bem.

Pacífico este mar que quase não se sente. Um mar que nos convida a descansar. Vamos subindo a América do Sul. Próxima paragem, Arica, uma terra estranha.

O deserto muito perto. Sabores de outros saberes.

Deixo-me ir.

Vou também.

Por fim terra. Um jardim muito agradável. A um canto do jardim um grupo de raparigas com traje típico. Cores do sul. Cores que dão vida ao mundo. No meio do grupo há uma morena que me chama a atenção. É muito morena, cabelos compridos, cabelos negros, cabelos de seda. Era impossível não a notar, não a olhar. Olhares que se cruzaram. Flashes sem resultados práticos.

Outra mulher de quem nunca soube o nome.

Deixei-a em Arica. Bem ao norte do Chile. Deixei-a entre um condor e um pelicano. Entre o deserto e o mar.

Prometi-lhe, sem lhe dizer nada, que um dia voltaria.

Quem sabe?

«Agora é só memórias de viagens! Ainda cansas as pessoas.»

Fala de Isaurinda.

«Sabes, foi uma viagem muito intensa. Aconteceram coisas incríveis.»

Respondo.

«Eu sei. Já te disse como gostei de ver a felicidade que traziam no rosto.»

De novo Isaurinda e vai, uma alegria nas mãos abertas.»

Jorge C Ferreira Junho/2023(398)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


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17 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Ainda o Chile”

  1. Manuel Costa Silva

    Muito bom ! Mais uma Crónica de excelência dedicada ao Chile ! Experiências vividas e vivas…Gosto muito ! Abraço apertado.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Manuel Costa Silva. Muito obrigado pelas suas palavras. Muito grato. Abraço forte

  2. Regina Conde

    As tuas viagens contadas através de conversas com pessoas que em cada paragem beijas e abraças. Os olhares continuam até ao mar que te leva a outras gentes e histórias de costumes e cores da vida. Viver os afectos de lugares distantes. Intensos sentires. Abraço meu Amigo

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Que bom estares aqui. Uma viagem é um encontro de afectos também. Há quem não dê por isso! Tu percebes bem o que conto. A minha gratidão. Abraço grande.

  3. José Luís Outono

    Memórias do nosso correr, por entre momentos guardados entre aspas, que no assaltam os diários do presente.
    Leio-te e leio-me nesse agendar de sóis, onde o humano se cruza com fronteiras e a história escreve momentos perpétuos.
    Mais um traço apaixonante do teu circuito de calendários, por entre risos e palavras desafiadoras de Isaurinda nestas nuvens de céus estranhos e enredos interrogativos.
    Grande abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís, poeta. Que bom esteteu comentário. Que bom estares sempre aqui. Uma alegria poder ler a tua maneira única de comentar. A minha gratidão. Abraço grande

  4. Eulália Coutinho Pereira

    Viagem maravilhosa. Contador de aventuras sem paralelo.
    Deixei-me embalar e pareceu-me ouvir aquela mãe guerreira, que respirava Chile. Amava a família como o país. Não poderia ter melhor nome Estrella
    Que belas memórias Amigo. Só a sensibilidade de Poeta para ler o ser humano. O mar sempre presente.
    O lado certo da vida.
    Obrigada por mais esta viagem.
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Que bem sintetizou as partes mais importantes da minha crónica. Que bom ter compreendido a Estrella. Um comentário com mar dentro. A minha gratidão por estar sempre presente. Abraço forte

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    A Isaurinda que não se preocupe. Não me cansa, ouvi-lo falar do Chile nem de Valparaiso, seus lugares de encanto, navegando por esse mar imenso, sua paixão.
    Voltar de novo a esse mítico, Color Café. Conversar com a “Mãe coragem”, pessoa forte e decidida, que por vós se encantou, o que não é difícil. A vossa generosidade e ternura é visível. Pessoas do bem, afáveis e gentis. Os olhos não mentem.
    Eu adoro as suas memórias, mostram-me lugares e sentires maravilhosos. Se voltar a Valparaiso, não se esqueça de mim. Pronta a ouvi-lo. Acho que tem muito mais para nos contar.
    Sempre grata, querido escritor, adorei.
    Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza, querida Amiga. Que belo e generoso comentário. Seria uma boa companhia nos cerros de Valparaíso. Como adorei as suas palavras. A minha mais profunda gratidão. Abraço enorme

  6. Filomena Geraldes

    Meu contador de viagens e outras voltas ao mundo, desde as terras quentes do sul às gélidas do norte, aos mares salgados de pérolas e
    algas, às partes desse mundo onde vivem pessoas que foram vilmente atraiçoadas e amordaçadas. Um Chile de Allende que cantara Jara nas ruas a um desolado e inóspito lar habitado pelo ditador Pinochet.
    Sempre foste um amante do que é belo e desejável. Desde o mar às mulheres.
    A uma Isabel,a fiel companheira de sempre, à ternura sentida por uma Estrella, senhora de um café de cor. Aquela que brilhava e exalava alegria, uma guerreira que servia pratos confeccionados com esmero e gosto. Uma mulher de esquerda com ideias definidas e um imenso amor pelo seu liberto Chile. O de outrora.
    Até às jovens da América do sul, em Arica, essa estranha terra, onde o teu olhar se prendeu às cores dos seus trajes e a uma morena de longos cabelos negros de seda.
    Como me apetece e me apraz saber das emoções que te norteiam, dos ideais que te sustentam, das inteiras palavras que te não largam, dessas ondas que desbravaste e das janelas que foste abrindo à medida que o tempo te foi ensinando a bravura do sentir e do viver!
    Intensamente.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Cada comentário teu é um poema que me deixa encantado. Não sei como te agradecer o me leres e comentar. É uma alegria para mim. A minha enorme gratidão. Abraço grande, grande.

  7. Cecília Vicente

    Tantas memórias, lembranças contadas pelas aventuras e cantares revolucionarios, tanto de tudo,e muito por escrever, prosa de vida vivida. Por terras passadas, mares navegados, poesia e música reencontrada num ouvir recordado de revoluções conquistadas clandestinamente. Mais uma vez, grata por ofereceres tanto. O meu obrigada sempre. Abraço meu amigo. Fica bem!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cecília. Que bom estares aqui. Que belo o teu comentário. Muito grato estou eu pela tua generosidade. Abraço enorme

  8. Claudina Silva

    O Mar esse teu Amigo que te leva por passeios de encanto, cores e sabores! Sensações inesquecíveis!
    Amei o teu maravilhoso texto. Um abraço Amigo Poeta Jorge C Ferreira.

    1. Jorge de Carvalho Ferreira

      Obrigado Claudina, minha Amiga. Que bom estares aqui com este bonito comentário. É uma alegria ver-te aqui todas as semanas. A minha gratidão. Abraço grande.

    2. Ferreira Jorge C

      Obrigado Claudina, minha Amiga. É sempre uma alegria ver-te presente neste espaço. Tão bonito o teu comentário. Muito grato. Abraço grande

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