Crónica de Jorge C Ferreira | Balanços

Crónica

 

Balanços
por Jorge C Ferreira

 

Querer saber da vida. Que lhe contem todos os segredos. Prometer calar. Ser estátua muda. Animal de carrocel. Ser animal de trabalho e não acreditar. Perguntar muito e a muita gente. Aos mais velhos. Aos que já viveram mais. Ouvir o que dizem os mais novos.

Querer saber do caminho percorrido. Da vida vivida e por viver. Das desgraças percorridas. Das alegrias que, muitas vezes, teimamos em esquecer. Do tempo da felicidade e do tempo do medo. Uma vibração que abana o corpo. O tempo em que não souberam de nada. O tempo do esquecimento.

Houve um dia em que lhes apeteceu contar tudo. Falar deles e para eles. Aproveitar enquanto a memória não se apagava. Enquanto o coração ainda cumpria a sua missão. Sabiam que o tempo corria contra eles. Era aquele o tempo de se encontrarem inteiros.

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Escolheu um bar, um bar muito antigo. Escolheu a mesa junto a uma lareira. Duas cadeiras confortáveis e uma mesa. O lume a crepitar aventuras de fogo vadio. Ali se prometeram encontrar todos os dias durante o horário de funcionamento do bar. Todos os empregados sabiam que não bebiam bebidas alcoólicas. Bebiam palavras e conhecimentos. Bebiam conhecimentos perdidos. Comiam pratos já esquecidos.

Não vos sei dizer quanto tempo durou aquela conversa. Conversa com horário pré-estabelecido. Conversa sem duração calculada. Quanto mais falavam mais coisas esquecidas apareciam para narrar. Espantos, memórias muito antigas. Nunca nada fica enterrado para a vida. Uma aventura de que não vislumbravam o fim. Percorreram tempos e lugares. Sempre sentados naquela mesa junto à lareira daquele bar com patine.

De tudo falaram sem nunca apontar o dedo ao outro. Não estavam ali para encontrar culpas. O seu intuito era descobrir as curvas da vida. A imensidão dos mares percorridos. Os seus olhos brilhavam ao lume da lareira. Tudo porque há conversas que são vidas inteiras. Momentos únicos em que alguém se atreve a contar pela primeira e única vez o nunca dito.

A coragem a crescer com a intimidade que se vai ganhando. Nunca os viram chorar ou rir. O seu registo era sempre sóbrio e concentrado. Nem um gravador, nem um bloco, nem uma caneta. Tudo gravado na memória que sabiam que um dia se iria perder. Não me perguntem porque não escreveram sobre o que falaram. Talvez achassem que eram coisas que apenas a eles diziam respeito. Que não iriam acrescentar nada ao mundo.

Se estou aqui a contar esta história é porque acho que o nosso balanço de vida deve ser sempre feito. Pode ser num canto de uma sala da casa. Mas tem de ser, sempre, num lugar recatado. Não há locais perfeitos para nada. Tudo é criado por nós. Somos uma vida em progresso para um lugar desconhecido.

Saber de nós. Dos nossos interregnos. Fazer um esforço para lembrar o já esquecido. Tudo isto parece um trabalho inglório. Mas é um exercício muito importante. A cada dia acrescentar um dia. A cada palavra um sentimento. Cada frase uma alegoria. Cada música uma nova história. Muitas vezes a vida a correr ao contrário.

Não se esqueçam que o tempo urge. Que a vida nos pede que contemos a vida. Que necessitamos de saber quem somos. Não se esqueçam.

«Aí, que história esta! Não me agradam nada estas conversas.»

Fala de Isaurinda.

«A importância de saber o que fizemos e o que vamos fazendo. Só isso.»

Respondo.

«Podes ter razão, mas não gosto destas coisas que, por vezes, te pões a falar.»

De novo Isaurinda e vai, um ar preocupado.

Jorge C Ferreira Março/2023(390)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


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22 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Balanços”

  1. José Luís Outono

    “O tempo urge”, excelente alerta do que somos, e como somos, mesmo nos tempos em que fomos
    Adorável ler-te e reflectir os traços do teu historial, que tanto nos dizem e ensinam.
    Perdão … não podes parar!!
    Grande abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís, poeta. Sim, o tempo corre e precisamos de contar o que tem importância. Partilhar é muito importante. Muito grato pela tua presença. Abraço

  2. Maria Luiza Caetano Caetano

    Sempre atento ás coisas importantes da vida e com delicadeza nos lembra, que “o tempo urge.”
    Lembremos a nossa história, enquanto sabemos quem somos.
    Tão belo o que escreveu, louvo e admiro, querido poeta. Obrigada, pelos bons momentos que nos oferece.
    Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Sim o tempo urge. Tem toda a razão querida Amiga. Ler os seus comentários é um prazer imenso. A minha gratidão. Abraço

  3. Branca Maria Ruas

    Também penso na importância dessa partilha com alguém que nos saiba escutar sem julgar. E, em troca, sabermos ouvir o que nos queiram contar, com a mesma atitude. Mas precisamos de alguém com quem tenhamos um grau de cumplicidade que nos permita um encontro assim.
    Talvez por isso alguns optem pela escrita. Cadernos e blocos cheios de desabafos que nunca ninguém leu guardados em gavetas.
    Mas também há quem não queira recordar algumas marcas do passado. Na minha opinião, embora todos sejamos diferentes, considero um erro. Porque, mesmo sem nos darmos conta, tudo fica registado. E, por mais tempo que passe, pode haver lembranças a ensombrar o presente.
    Esta tua crónica pode ser um incentivo a partilhas libertadoras.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria. Sim a importância da partilha é importante. Ter com quem falar sem travões. Trocar de vidas. Saber ouvir é tão importante. Sempre assertivos os teus comentários. Muito grato. Abraço.

  4. Regina Conde

    Fazer o balanço da vida é um desafio exigente. Quantas lembranças se desvanecem ao longo do tempo. O crepitar do lume como o amor que nos alimenta a vida, partilhar as lembranças vividas. Excelente crónica. Abraço Jorge.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Belo comentário. Lembrar o tempo perdido. A minha gratidão. Abraço.

  5. Filomena Geraldes

    Saber de nós.
    Sem cronómetros.
    Sem empecilhos.
    Sem mais.
    Saber do que fomos. Das claridades e das opacidades. Dos pequenos triunfos.
    Das grandes derrotas. Das viagens e das aterrisagens.Planos delineados
    com precisão quase matemática. Das impetuosidades. À tona da vida. Sem escafandro. Sem rede. Sem receios.
    Saber como amigos .Desde sempre.
    Como se não existissem segredos.
    Nem omissões.
    Nem desculpas.
    Apenas duas cadeiras confortáveis e um lume de lareira a gemer baixinho. Dois homens a voltar atrás. Tão lá atrás que as memórias se tornam difusas. Quase imprecisas. Urgentes. Imperiosas. Galopantes.
    Dois homens. A vaguear. Peregrinos da vida. A rasgar o peito. Deixar escapar tudo quanto vem à mente. Ao mínimo pormenor. A resina efervescente dos segredos.
    A lama dos caminhos. Os caminhos frondosos.
    Abertos os livros dos olhos.
    Onde? Porquê? Quando? Como? Quem?
    Saber de nós.
    Mesmo que arranquemos a alma. Mesmo que doa a dor infligida. Tresande ao bafo do arrependimento Mesmo que Deus exista. Mesmo que o mundo se retrate.
    Mesmo que o tempo estenda os seus dedos imparáveis. Ondulantes.
    Mesmo assim.
    Descobre quem vive em ti. Quem?
    Se o silêncio omisso ou o corpo aceso como um farol…

    Uma crónica magnífica. No fio do horizonte. Olhemo-nos ao espelho. Do outro lado. Quem?

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Muito belo este teu comentário. Ler-te é um prazer sem tempo. A minha imensa gratidão. Abraço

  6. Clara Figueiredo

    Como não gostar duma história com que me identifiquei tanto!?
    Linda e cheia de verdadeiro amor ❤️🥀

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Tita, minha Amiga poetisa. Como não gosrar das suas sensíveis e belas palavras. Muito grato. Abraço

  7. Eulália Coutinho Pereira

    Excelente. O balanço de vida. Privilégio da idade. Os dias que vão ficando para trás, um a um.
    Ã memórias tão presentes. O que ficou por dizer, o que ficou por fazer. Aquilo que se disse e se devia calar. O que se fez e não devia fazer. A vida constroi-se com as escolhas que fazemos.
    Recordar. Fazer o balanço. O privilégio que a vida nos dá.
    Obrigada Amigo, por estar desse lado , pela excelência da sua escrita e tanta autenticidade.
    Grande Abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. É tão gratificante saber que está aí a ler-me. Os seus comentários tão certeiros que são um gosto de ler. A minha gratidão pela sua presença. Abraço

  8. Silva Claudina

    Tão lindo o teu texto para iniciarmos a Primavera! Tão importante termos com quem partilhar as nossas memórias! Momentos únicos e de grande valor! Obrigada pelas tuas partilhas!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Claudina. Assim vamos partilhando a vida. Saber uns dos outros é muito importante. Muito grato pela tua presença. Abraço

  9. Silva Claudina

    Tão lindo o teu texto Poeta para iniciarmos a Primavera! Tão importante termos com quem partilhar as nossas memórias! Momentos únicos e de grande valor! Obrigada pelas tuas partilhas!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Claudina. Já comentado. Abraço

  10. Fernanda Luís

    Boa noite Jorge
    Balanços de vida, oh se concordo!
    Também faço à minha maneira.
    Linda história que nos conta na crónica de hoje. Imaginei o lugar, os personagens, os possíveis diálogos, a música de fundo e os copos de vinho tinto quase vazios. Também bebiam poesia e havia uma beata num vaso.
    Saber ouvir e falar sem tabus, precioso como a seiva.
    “Saber quem somos”.
    Abraço de primavera🌹🌞🌞🌞

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. Belo o seu comentário. O ambiente qye cria é apetecível. Os bares de todas as conversas, de todas as partilhas. Muiti grato pela sua presença. Abraço

  11. Lénea Bispo

    De balanços se trata . Há quem se lembre de toda uma vida e conte os seus segredos, as indecisões as batalhas perdidas e as conseguidas . Há quem faça os seus diários , a sua memória presente . Mas há quem não se lembre de o escrever na hora exacta pensando que nunca mais esquecerá. Triste ilusão !
    Assim se passa uma esponja sobre uma parte importante da nossa vida. Claro que ainda há lembranças e essas devem ser partilhadas com quem nos saiba ouvir .

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Lénea. Cadernos e cadernos onde vamos escrevendo a nossa vida. A oartilha também é importante. Por vezes um exercício complicado. Depois um ar especial. Muito grato pela sua presença. Abraço

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