Crónica de Jorge C Ferreira | O Sofrimento

Crónica

 

O Sofrimento
por Jorge C Ferreira

 

Quando os dias e as noites já não se diferenciam. As portadas sempre fechadas. Uma luz sempre acesa. As paredes despidas de alegrias. Uma cama sempre por fazer. Uma vida por celebrar. A festa da vida que falta.

O tempo a correr. Os acontecimentos inesperados que se sucedem. Uma corrida que parece feita ao contrário. Os caminhos sem fim. Os caminhos depois do fim. O fim de tudo e o sem princípio.

Uma bola colorida de que já não vimos as cores. A malvada saudade do que fomos e do que os outros foram connosco. Tudo nos vem à memória. Imagens numa sequência bem arrumada. Uma lágrima que foge e cai no peito de alguém. Nascerá daí um novo mar. Uma onda imensa que nos levará ao outro lado do mundo. A ideia renascida.

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O silêncio que abominamos. A necessidade de uma companhia. Nem que seja o som roufenho de um rádio de pilhas. Coisas que parecem heranças. O tempo em que se acompanhavam os acontecimentos pela rádio. Era o tempo dos transístores. Mais tarde os walkmans. Os auscultadores. O estar sozinho com aquelas vozes, aquelas músicas, aquelas notícias.

Um colchão que já cansa. Corpos dormentes. Corpos tormentos. Os lençóis que incomodam com o seu branco doentio. A falta do calor de outro corpo. A solidão da cama fria. Os que nos vêm fazer o que já esquecemos. Gente de bem. Um fio de voz. Uma gargalhada sem nexo. No entanto gargalhar faz bem, há quem diga.

Inventar uma nova forma de comunicar. Reinventarmo-nos. Os gestos que começam a cansar. A letra que sai estranha e confusa. A confusão da mente. Os corredores de luzes amarelas. As mãos que tremem. Tentar vencer o medo. Tentar mudar o caminho das luzes. Esperar a visita de um amor perdido. Ter um relógio parado na mesa de cabeceira. As horas a deixarem de ter sentido.

Tudo nos sabe mal. Até a água que é suposto ser insípida. Nada nos apetece. Só nos apetece saber o que nos está destinado. Quando e como? No entanto sabemos que tudo isso é impossível de saber. Há o chamado livre-arbítrio que se impõe a todas as vontades programadas.

A certa altura as agulhas fazem parte da nossa vida. As seringas grandes e pequenas. As pílulas acomodadas em caixas são nossa dose diária. Os exames invasivos. As múltiplas radiações. Essa mania de tentar retardar o inevitável. Não sei se, por vezes, valerá a pena tanto sofrimento. Tanto fingir viver. Tantos pensos de morfina. Tanto veneno.

Não há cuidados paliativos. Tanta mentira mal contada. Tanto suicídio calado. Tanto falso moralismo. A voz da igreja a ecoar em claustros vazios. O que querem mais para nos darem direito a sermos donos da nossa vida e da hora da nossa morte?

Sim estou a falar da eutanásia.

É só para quem quiser. Ninguém vai ser obrigado. Há gente que me faz urticária. Alergias que me consomem.

Juízes, togas a becas. A naftalina. A desgraça das traças. O mal dos homens. Um ponto, uma vírgula. As dúbias interpretações do mais simples. As estranhas sentenças. Os votos de vencido. Os vencidos da vida.

As ridículas falsidades. Fantochadas com ar solene. Um cheiro a mofo. A beatice e a falsa caridade. Tanta coisa a faltar a tanta gente e tanta gente com tanto.

Vamos pensar!

«Essa coisa da eutanásia faz-me impressão. Mas acho que tens razão.»

Fala de Isaurinda.

«Eu sabia que tu, apesar de seres uma mulher de fé, compreenderias.»

Respondo.

«Sim. Mas não abuses muito.»

De novo Isaurinda e vai, um ar resignado.

Jorge C Ferreira Fevereiro/2023(385)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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16 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | O Sofrimento”

  1. Maria Luiza Caetano Caetano

    É doloroso ver sofrer. Descreve de forma única, a dor.
    Admiro muito a verdade das suas palavras. Estas dói-em muito, mas são a realidade que vive connosco.
    Vamos caminhando e aguardemos com esperança.
    “Uma onda imensa que nos levará ao outro lado do mundo.” Que frase linda, querido escritor. Tinha de terminar, com poesia.
    Abraço enorme.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. A dor, que a dor dos outros nos causa. O nosso caminho e os escolhos. Tentar vencer os caminhos. A minha Amiga é uma mulher coragem. Muito grato pelas suas palavras. Abraço enorme.

  2. Regina Conde

    Um tema que devemos abordar e ser coerentes. Quando vivemos situações dolorosas todas as decisões são ponderadas ainda que em silêncio. Sofrer dói muito. Se algo doloroso me acontecer, não quero ser esse fardo para a minha filha. Abraço grande querido Amigo. Até segunda feira.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Sabes, só perante a situação concreta saberemos. Mas a escolha deve ser sempre nossa quando estamos no uso das nossas faculdades. Grato por estares aqui. Abraço grande

  3. António Feliciano Pereira

    Boa tarde, Jorge!
    Para quem toda a vida parece ter vendido saúde, aos 77 anos entristece, parece que tudo vai desabar. Não me quero esquecer de tantos que ao longo da vida só por grande necessidade consultam o médico com tempo limitadíssimo de 15 minutos …, e muito fica por dizer pela benévola diligência do clínico. O sofrimento continua até que haja coragem para se libertar de algum peso na carteira para amolecer as dores.
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. Os nossos direitos a serem coartados. A nossa necessidade de contar o que sentimos. A exigência que não devemos calar. Grato pela sua presença. Abraço

  4. Filomena Geraldes

    Quem assim descreve a dor é porque fez dela a sua companheira.
    Uma cruel amante. Inoportuna. Insistente.
    Tirana sem escrúpulos nem sentimentos.
    De estar a seu lado no tempo que se
    escoa. E se esvai.
    Acompanhar nos dias longos e nas penosas noites de lençóis brancos e gélidos.
    Passar os seus longos dedos pelo
    corpo como que a acariciar. Ser penumbra e silêncio. Um silêncio de trevas.
    Cravar as unhas. Trincar a pele. Mastigar o coração. Devorar as vísceras. Envenenar o sangue.
    Dar lugar à lucidez. Ir buscar as lembranças.
    Retalhar os pensamentos. Impedir o gosto.
    Fazer estremecer os músculos. Os tendões. As sensibilidades.
    Aprimorar o riso escarnecido. Não dar tréguas. Não estabelecer limites.
    Não permitir sossego. Paz.
    Quem assim fala da sua amante é
    porque a trata por tu. Ela o envolveu na sua teia.
    Tão perigosa quanto malévola.
    Quem assim a retrata já conheceu outros amores. Em nada similares. Constantes e sedutores. Inesquecíveis. De um tempo perene.
    Quem assim a descreve é o homem que preconiza que paixões como esta deviam ser banidas. Extintas. Há que escolher quem connosco se
    aninha,se entrelaça e permanece até que o queiramos…
    Uma crónica de dor e amor.
    Abraço terno, meu amigo

    1. Eulália Coutinho Pereira

      Bela e comovente crónica.
      Nela me revejo. Percorro o caminho que se vai aproximando do fim. Cada vez mais perto o princípio do nada. As memórias surgem embrulhadas em sonhos.
      Assiste-se à mudança do mundo.
      Foge a liberdade de decisão.
      Não é verdade que melhores dias virão.
      Vive-se um dia de cada vez, com a memória de uma vida.
      Obrigada Amigo, por estar desse lado.
      Um abraço.

      As

      1. Ferreira Jorge C

        Obrigado Eulália. Como diz o cantor: “enquanto houver estrada nós vamos caminhar”. Não matar a réstea de esperança que sempre existe em nós. A minha enorme gratidão por estar sempre neste nosso espaço. Abraço

    2. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Tu dizes tudo de uma forma tão assertiva e inteira que, só me resta, mostar a tua gratidão pelo tempo que dedicas às minhas crónicas. Abraço enorme.

  5. José Luís Outono

    Belíssimo texto de uma reflexão bem apurada, onde a verdade é um mero exemplo de parágrafo feito em cálculos de invenções e/ou mentiras da conveniência sem decência.
    Bravo, ao trazeres a “eutanásia” a este curriculum da verdade, infelizmente oculto e traçado em milhentas dúvidas de fé duvidosas.
    Luzes ocultas … de devaneios que acabam em protocolo sempre interrogativo.
    Adorei ler-te ( como sempre) e aplaudir a tua coragem de esculpir verdades, doa a quem doer.
    Grande abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís, Poeta. Temos de ir ao fundo da vida e ao fundo de nós. Somos um conjunto de sentimentos dispersos que nos esforçamos por unir. Grato pelo teu belo comentário. Abraço forte

  6. Claudina Silva

    Vamos pensar…Como senti todas as palavras do teu belíssimo texto! Já vivi estes momentos que tão bem descreves! Parabéns Amigo Poeta Jorge C Ferreira! Amei!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Claudina. Pensar sempre, minha Amiga. Ter coragem. Grato por tudo. Abraço enorme

  7. Ivone Maria Pessoa Teles

    Gostei do teu texto sobre a eutanásia/ sofrimento. Só quem gosta de ver sofrer é contra. Eu tenho ” testamento vital “, mas desejo e quero ir mais longe. Não quero prolongar uma ” vida a prazo”. Faltam camas para tratar quem tem possibilidades de se tratar e VIVER ? Então?!. A Isaurinda é sábia. Beijinho amigo, meu Amigo/ Irmão. Ivone

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Tu és uma mulher coragem. Nunca fugiste à luta. És um exemplo para mim. A minha imensa gratidão pelas tuas palavras. Abraço enorme

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