Crónica de Jorge C Ferreira | A falta do mar

Crónica

 

A falta do mar
por Jorge C Ferreira

 

Sentir uma necessidade absoluta de descansar o corpo e a mente. Tanta coisa a violentar a vida. A sujidade que é nossa agonia. Coisas que se sucedem. Um desalento que nos consome. O cansaço que é enorme. A falta de paciência a grassar.

Partir. Encontrar o barco perfeito. Só nós e o mar. Uma conversa intensa. Conhecer as suas raivas e os seus macios tempos. O veludo da espuma que deixamos para trás. Olhar e ver o passado. Sentir que tudo é longe. Que nada nos acorda fora de horas. Um espaço perfeito para viver. A enorme cama e a secretária que nos enamora para escrever.

Os amigos da noite. As conversas cantadas. O ar livre. Aquela casa grande. Não querer saber da próxima paragem. Os peixes que nos vão acompanhando. Alguns não os vemos. Os músicos. Um pianista vestido de negro. As teclas do piano, o marfim, as cordas e aquela melodia única. Por fim, a nossa canção. Escrever sem saber para quê. Uma necessidade que se sente. Há quem desenhe e com isso preencha a sua vida.

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Os soturnos bares. A música ambiente. A conversa em surdina. O tempo a ganhar corpo. As pessoas a serem gente. Alguns a esconderem no escuro a sua cara envergonhada. Mãos que se unem e tremem. A música, sempre a música leve que nos embala. Uma água com gás e um café, mais um café sem açúcar. Mais uma noite. Mais uma passagem de tempo. Mais um pedaço de vida.

Na proa do barco, vimos chegar o futuro. Futuro que vamos engolindo. Gole a gole vamos saboreando o novo. E um futuro mais longínquo sempre lá ao longe. Muitas verdades por dizer. Muitas vontades esquecidas e, no entanto, tantas vontades ansiadas.

Navegar é um sonho que não se esgota. Um sonho belo e constante. Uma vontade que não nos cansa. Um sabor único. O sal e a frescura. A água morna. O azul nas suas imensas tonalidades. São tantas as noites em que sentimos a nossa pele pintada dessas cores. Aquele barulho constante. Aquele modo de o mar nos dizer alguma coisa. O nosso silêncio. Por vezes uma lágrima e um beijo. Continuar a escrever.

Aquela varanda aberta para um sem fim. Aquele outro mundo que toda a vida procurámos. Aquela cadeira repousante. De quando em vez passamos por um barco lá ao longe. Perguntamo-nos sempre, para onde irá? Quem irá ali para além dos contentores? Quantas nacionalidades? É dura a vida dos trabalhadores do mar. Muitas vezes gente que é maltratada, abandonada. Gente vinda de paragens remotas. Os filhos da pobreza. Explorados por gente que não mostra a cara. Gente sem princípios.

Entretanto há quem vista o melhor para o jantar. Vestidos arrojados. Fatos feitos por medida. Eu, que não tenho fato algum, visto uma camisa por cima de uma t-shirt e uma echarpe à volta do pescoço e estou pronto. Há uma cantora que canta êxitos de sempre. Uma voz que não nos cansa. Um sorriso que nos atrai.

Navegar, navegar, navegar. A maior atracção da minha vida. O meu sonho de menino.

«Andas danadinho para ir de viagem.»

Fala de Isaurinda.

«Sim, sinto muito a falta. O mar faz-me viver.»

Respondo.

«Eu sei. Vens outro sempre. Vocês bem precisavam.»

De novo Isaurinda e vai, a enviar um beijo com a mão.

 

    Jorge C Ferreira Janeiro/2023(381)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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18 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | A falta do mar”

  1. Ferreira Jorge C

    Obrigado Ivone. Minha Amiga/Irmã. Sempre uma alegria ter aqui a tua presença. O mar é, para mim, uma paixão. Tu sabes. Saber dos seus caminhos. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  2. Regina Conde

    Navegar, sonho de menino que realizaste e não te cansas. Sempre vês mais e mais. Só o mar te sabe inteiramente. O sal que gostas de sentir, lava-te a alma e não resistes. Em breve vais repetir e ver o que ainda não foi visto. Abraço-te meu Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Sim, foi sonho de criança. É no mar e com o mar que limpo as amarguras. Procurar sempre. Grato, pela tua presença. Abraço enorme

  3. Ferreira Jorge C

    Obrigado Claudina. Que bom estares aqui. O Mar pode ser a nossa vida. Grato pela tua presença. Abraço forte

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    O mar, uma das suas paixões.
    Mais um sonho, que decerto quer realizar. Navegar nesse mar imenso, que espera por si.
    Belos textos vou ler e de novo viajar, através da sua excelente escrita. É mesmo com prazer, que o leio. Espero que o “seu sonho de menino,”aconteça mais uma vez. “Navegar é preciso”.
    O mar, a maior e mais bela força da natureza! Que livremente, vai sempre buscar o que lhe pertence,
    Tão belo o que escreveu, querido escritor. Adorei.
    Abraço amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. O Mar sempre me abraçou, sempre o abracei. Ser marinheiro foi a minha primeira escolha de menino. Oficial da marinha mercante. Vivo perto do mar. Foi o que restou. A minha imensa gratidão pela sua presença aqui. Abraço enorme.

  5. José Luís Outono

    O mar, a mais bela força da natureza … mesmo quando está zangado.
    Debruças-te nele num diálogo solicitador e analgésico dos momentos de hoje, nos confrontos do ontem que guardas em saudades imensas e comparações inéditas.
    Como te entendo … quando no estatuto de filho único, grito, apelo e segredo momentos ao mar irmão.
    Perdoarás, mas nestes conflitos de lutas assassinas, serem consideradas crimes de guerra, e não ver ao longe o Tribunal Internacional, medito … e desabafo que o mar é a mais bela e legal força respeitadora mundial, porque devolve tudo o que não lhe pertence, e resgata tudo o que lhe retiram.
    Mais um compasso do teu acto de criar, onde me envolvi com muito gosto.
    Grande abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado, José Luis, Poeta. Belo comentário. O mar é uma tentação constante. Uma vontade de azuis que nos interpela. Por vezes impossível de resistir. Navegar. Grato pela tua presença. Abraço enorme

  6. António Feliciano Pereira

    Boa tarde, Jorge!
    Navegar num mar de ondas que não se gastam e beijam-se entre si cumprindo o ciclo da oxigenação.
    Esta purificação que alimenta a vida que ele contém e que nos deixa curiosos com o que contém o seu fundo, os segredos de tantas vidas humanas desaparecidas, tantos enigmas por desvendar!
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. A paixão pelo mar. A vertigem de subir e descer uma onda. Ondas vindas de muito longe. Ondas nossas. A minha gratidão pela sua constante presença. Abraço forte

  7. Isabel Soares

    Uma crónica muito bonita sobre os confins das entranhas. Os sucalcos e os declives de um corpo e de uma alma que anseia por reparação. No mar. Àgua símbolo e água veículo.
    O mar apaixonante que permite recompor um ser. Possibilita-lhe o sonho. Atribui-lhe um futuro, ausente de passado. As teias desfazem-se à deriva num barco que se faz à viagem no mar. Um desejo de ser. Um desafio. Um estar em sintonia com todos os sentidos e capacidades.. A vida em si.
    Mas também neste texto a nostalgia, a tristeza e a finitude a trairem os sonhos, as vontades e a escrita. As amarguras, o sofrimento e a falta a impelir a superação e o preenchimento do autor.
    Um eu em constante inquietude. No presente e na introspecção mnésica. Todo o desassossego necessita de uma pausa. Às vezes emerge um cansaço visceral que é preciso vencer. Regressar à utopia hermenêutica. Ignorar o tempo monótono e implacável e soerguer-se.No mar. Através do mar.

    1. Eulália Coutinho Pereira

      Bela ausência do mundo em que vivemos. O cansaço que nos entorpece. O mundo do avesso.
      Só a beleza do mar imenso dá tranquilidade, mesmo quando agitado. Só a imensidão do mar para esquecer o mundo em que vivemos
      Obrigada Amigo por podermos acompanhar estas viagens.
      Grande abraço

      1. Ferreira Jorge C

        Obrigado Eulália. Belo comentário. O Mar pode ser o nosso lugar de exílio. A nossa vontade imensa de ser. Grato pela sua presença neste espaço. Abraço grande

    2. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Belo comentário. O mar. O sal. A vida por dentro dele. Aprender a viver com ele. Uma onda que nos lava a vida. Grato pela sua presença. Abraço grande

  8. Claudina silva

    Que maravilha ler as tuas recordações sobre o teu mar!Que em breve possas realizar os teus sonhos para podermos viajar contigo querido Poeta! Obrigada

  9. Fernanda Luís

    Caro Jorge, cidadão do mundo, aqui deixo o meu comentário telegráfico.
    Amei a BELA crónica de hoje, um privilégio lê-lo.
    Navegar, navegar, que se torne realidade em breve.
    Abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. Como é gratificante saber que somos lidos. O mar meu eterno destino. Grato por estar aqui e pelos seus comentários. Abraço grande

  10. Ivone Maria Pessoa Teles

    Meu querido Irmão/ Amigo, o teu MAR!!!. É tão bom ler-te e ” ouvir ” na cabeça e coração os teus dias felizes. Um GOSTO enorme que nos faz bem. A tua ” PRESENÇA”, sempre. Beijinhos <3 <3 .

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