Crónica de Jorge C Ferreira | Os ensinamentos dos mais velhos

Crónica

 

Os ensinamentos dos mais velhos
por Jorge C Ferreira

 

O que vemos acontecer. A vida difícil de quem trabalha. Saber e lembrar factos muito antigos. Os ensinamentos dos mais velhos. Aprender a ouvir, a saber ouvir. Ir armazenando experiência. A vida que começa antes do tempo. O tempo que não se compadece com as dificuldades das pessoas.

Os livros escondidos no chão do sótão. Um livro importante no meio de tão poucos livros. O colega do meu Avô que foi preso porque recebia dinheiro dos camaradas de trabalho para ajudar organizações que lutavam contra o regime. Colega que depois foi enviado para Moçambique. Era muito pequeno, mas a história ficou-me gravada. Quando vinham a Portugal, o casal ficava em nossa casa. Para mim era a história viva a acontecer junto a mim. Naquela mesa cabia sempre mais alguém. Hoje ainda entendo a palavra camaradagem consubstanciada nestes simples, mas enormes actos de solidariedade.

Na minha velha casa de Lisboa todos tinham lugar. Era um ponto de apoio para os que procuravam nova vida, vinham para a tropa, ou vinham apenas de passeio. As mulheres da casa, incansáveis, tratavam de tudo. Uma vida de cansaço e de uma responsabilidade imensa. As mais novas já estavam no atelier de uma madame a aprender costura. Chegavam a casa e continuavam a labuta. Lembro-me dos aventais de toda a vida. Não esqueço os tanques de pedra cinzenta. Do sabão amarelo, do azul e branco. Tudo cheiros que ainda vivem em mim.

capa jcf

Aprendi a respeitar a coragem dos que arriscavam a vida para lutar pela liberdade para todos. Sempre fui ensinado a desconfiar dos que diziam mal dessa corajosa gente. Quer quem dissesse mal se afirmasse pela direita ou pela esquerda. A vida veio dar razão a estes ensinamentos. Há sempre gente honesta que se deixa envolver nestes movimentos. Em todos os quadrantes da vida política há gente séria e honesta. Nunca generalizem.

Tudo isto me veio à cabeça hoje ao ouvir a conferência de imprensa de Jerónimo de Sousa, que as televisões se dignaram a dar em directo, embora alguns canais de notícias tivessem interrompido para ouvir os comentadores avençados. Alguns comentadores sabem pouco da vida. Podem ter estudado, mas ficaram por aí. Sabem de retórica, mas de vida vivida muito pouco. Felizmente o canal de notícias da televisão pública deu tudo até ao fim. Cumpriu com a sua obrigação.

Estou à vontade para falar sobre isto porque não milito em qualquer partido. Considero-me um homem de esquerda e votarei sempre à esquerda. A partir de 1991 considerei que tinha deixado de ter condições para militar no Partido. Coisas que são só entre mim e o Partido. Coisas que guardo ciosamente. Mais uma caixa que está bem fechada. Nunca mudei de ideias. Tentarei sempre honrar a memória do meu Avô. Ser fiel aos nossos princípios só nos dignifica.

Mais um senador que abandona a política mais activa. Um dos que esteve na construção da nova constituição da República. Um operário que sempre se comportou como tal. De uma lealdade à prova de bala. Congratulo-me com o respeito com que políticos de vários quadrantes lhe dispensam. Embora saiba que há algum cinismo em muitas declarações de circunstância.

«Saio do lugar como entrei.» Isso basta-me para me apetecer dar-lhe um abraço.

«Ainda vamos ter saudades do camarada Jerónimo.»

Fala de Isaurinda.

«Era tempo de descansar. Já merecia. A saúde em primeiro lugar.»

Respondo.

«Também tens razão. Que melhore.»

De novo Isaurinda e vai, o punho erguido.

Jorge C Ferreira Novembro/2022(372)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


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22 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Os ensinamentos dos mais velhos”

  1. Regina Conde

    Sei de quem te daria um abraço fraterno. Respeitar quem nos ensina a ser dignos. Nunca fui filiada em partido algum, as tentativas foram algumas. Ensinamentos que nos constrem. Excelente crónica. Abraço enorme meu Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Que bom estares aqui. Os Abraços fraternos são sempre bons. Respeitar os mais velhos. Grato por tudo. Abraço enorme

  2. Filomena Geraldes

    Foi com a minha avó Carmo, a tal do carrapito, alta, esguia e seca, algarvia de gema, mulher de poucos estudos mas de muita sabedoria que muito aprendi.
    Na cozinha foi a minha mestra. Ainda hoje faço umas pataniscas de bradar aos céus.
    Na política, ainda me recordo como se fosse hoje, no dia 25 de abril, fizemos uma festa. As duas!
    Mais eu. Ela não era de grandes euforias.
    Sempre me contou das injustiças, da miséria dos mais humildes, da falta de liberdade, de ter sofrido na pele e na alma a arrogância dos senhores que tinham nas suas mãos o poder
    e o servilismo dos outros. Dos que nem falar podiam…
    Foi com ela que aprendi a admirar Cunhal. Admiração que ainda hoje conservo.
    Não estou filiada em nenhum partido.
    Creio na dignidade humana e na nobreza de ideais.
    Na justeza.
    No acesso aos mesmos privilégios. Na paz.
    Hoje o nosso poeta empunhou uma bandeira branca. E eu festejei. Rejubilei. Como naquela manhã-cravo de abril.
    É uma bandeira de branca pomba.
    Solta de liberdade. De cumprir sonhos.
    Com asas para voar…!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Filomena. Tão lindo. As nossas Avós, a sua imensa sabedoria. Mulheres prontas para tudo. Mulheres que sabem ouvir e falar no momento próprio. O sabor da ternura. A minha gratidão. Abraço para ti e para a Avó Carmo.

  3. Maria Luiza Caetano Caetano

    Que bonito o que escreveu, meu Amigo.
    Um texto para ler muitas vezes, para saborear pela verdade pura das suas palavras.
    Sempre soube ouvir os mais velhos, transmitiam-me as coisas que eu não ouvia na escola.
    Lindo, o que deliciosamente nos descreve.
    Desejo muita saúde, ao leal e digno operário, que tão dignamente se manteve no seu percurso político.
    Oh, meu Amigo como tanto devemos aos nossos Avós ! Tanto nos ensinaram.
    Gratidão, por tanto o que me ensina. Vou voltar a ler, tem tanto para meditar.
    Abraço grande, querido escritor.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Tão importante o seu comentário, as suas palavras. Os nossos mais velhos, essa escola que nunca devemos prescindir. A sabedoria arrancada ao tempo. A minha imensa gratidão. Abraço

  4. maria fernanda morais aires gonçalves

    Muito me honras ter te por amigo. És Leal! Aprendeste a Lição com quem te criou, com quem cuidou de ti, tal qual como eu, sou fiel aos principios que aprendi com os meus pais e minha Família.
    Por isso eu conto sempre contigo e tu comigo. Um abraço apertado!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. Amiga leal que sei estar sempre pronta. Vamos aprendendo um com o outro. Gosto de te ter por perto. Grato por tudo. Abraço

  5. Isabel Soares

    Um escrito afirmativamente político e visceralmente pessoal. A “pretexto” de um acontecimento nacional, com uma interpretação individual, e as memórias ( significantes e de significado), objecto de uma reflexão que se cruza com o sucedido.
    Esta crónica revela, mais uma vez, os princípios do autor numa voz sócio-política que se quer e faz ouvir. Os tempos pré-inaugurais de uma democracia e a luta de muitos até hoje para a fazer vingar. Recordações de um modo de vida diferente e que acompanham a identidade do autor. Inscrevem-se nele. Moldaram-no. ” Ensinaram-lhe” a vida. Esse viver antigo de que retira sentimentos universais. Esquecidos? (?!).
    Um texto de resgate das dificuldades e da vivência das mesmas, em que foi espectador e autor. Continua a sê-lo. A emergência na política no seio familiar. As raízes humanistas que alimentam a sua singularidade. E Lisboa. Sempre Lisboa. Imagino que o centro onde se preparava a ruptura por gente corajosa e sofrida. Um local onde via partir e chegar homens mutilados e marcados por uma guerra que não lhes pertencia. Muitos ainda cá estão. Ninguém os recorda. Gente anónima, de que o cronista marca presença.
    Um texto com alguma nostalgia. Um texto sem luta, mas de luta. Dois tempos que se confundem ou um tempo de vários paradigmas. A vertente política embrelhada no humano. Neste indivíduo que assume um passado e um presente nas suas crenças, modo de estar e ser, numa sociedade que tem uma história a não esquecer. Uma vida de raízes fortemente políticas e revolucionárias. Uma vida a assumir-se nas vivências e alicerces. Uma vida conscientemente “à margem”, inconformada e inconformista. Única maneira da muďança acontecer. E , subentende-se, na sua voz, há muito, ainda, por fazer. Muito por lutar. Raptar experiências e os “ensinamentos”das mesmas será uma possibilidade.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel Soares. É imenso o seu comentário. Vai além do que eu escrevi. A vida e o nosso entorno vai-nos formatando. Há princípios que guardamos para a vida. Assim nos vamos entregando. Na escrita também. Muito grato. Abraço

  6. Maria Matos

    Maria Matos. 15 de Novembro 2022 8.27
    Incrível como me identifico com tudo o que escreve nesta crónica, Jorge. Também me ensinaram a respeitar e ouvir a sabedoria dos mais velhos. Aliás gosto sempre de aprender. Também sou de opinião de que é muitas vezes a vida e não só os estudos, que nos dão tanto na vida!
    Bem diz o Jerónimo de Sousa… saio como entrei… Homem que admiro, um Senhor. Também como o Jorge, sou de esquerda, impossível não ser, mas não filiada em nenhum partido.
    Tanto de comum com esta crónica, que como todas são um ensinamento de vida. …
    Grande e fraterno abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Matos. Que bom estar aqui. Que feliz me sinto por se identificar com o que escrevi. O respeito pelos mais velhos é muito importante. “Saio como entrei” a frase que também me marcou. A minha imensa gratidão. Abraço

  7. Ivone Maria Pessoa Teles

    Já lido, gostado e comentado. Ai, J,de M., vocês implicam comigo!!!!!!!!
    Quando é enviado aparece a frase ” já foi comentado, igual ( mais ou menos assim) e ” voltar “.

    1. Eulália Coutinho Pereira

      Que bela crônica. Viagem no tempo com o ensinamento dos mais velhos. Tanto que se aprende e não se esquece. Histórias contadas em noites de inverno,, junto à lareira crepitante. Tanta miséria havia. Aprendi a olhar para os que pouco ou nada tinham. Pés descalços que pisavam as calçadas frias. Sonhei com um mundo melhor.
      O dia da Liberdade. Luta pelos direitos dos trabalhadores. Tanto caminho percorrido.
      Hoje, com algumas desilusões, continuo fiel aos valores que sempre segui. Continuo a espera de um mundo melhor.
      Obrigada Amigo, por estar sempre desse lado, com a sua escrita de excelência.
      Grande abraço .

      1. Ferreira Jorge C

        Obrigado Eulália. Que belo comentário o seu. Um percorrer da vida pela mão dos mais velhos. O seu saber. Os caminhos percorridos. Continuar o caminho. A minha imensa gratidão. Abraço

    2. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, mina Amiga/Irmã. O importante é o comentário lá estar. O teu falar único. Grato pela tuas palavras. Abraço

  8. Lénea Bispo

    Eu diria que o mundo não é para os velhos . Nesta sociedade, eles não são dignificados , mas felizmente , ainda há alguém os quer ouvir, porque têm um grande capital de conhecimento acumulado . Mas houve tempos em que os velhos eram ouvidos com muito respeito e os seus ensinamentos eram louvados . Nem gosto do termo que utilizei, os ” velhos”. Nisto os espanhóis têm uma palavra que os respeita : ” mayor”.
    Jerónimo de Sousa é o símbolo da retidão ” saiu como entrou, não se lhe agarrou nada às mãos . As suas palavras fizeram – nos muita falta , a sua intervenção política . Um grande senhor! Este ” mayor”!!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Lénea. Sim, é difícil para os mais velhos viver neste país.os nossos mais velhos é a sua sabedoria. Ser fiel aos princípios e aos ensinamentos. Saber honrar a rectidão. Saber a importância da entrega aos outros. Muito grato. Abraço

  9. Ivone Maria Pessoa Teles

    Fomos educados por Famílias que não se conheciam, julgo eu, mas por alguma razão somos Amigos/Irmãos. Os mesmos ensinamentos, os mesmos ideais. Beijinhos.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone. Sim somos assim. Honramos os nossos mais velhos. A nossa família foi a mesma na forma de pensar e estar. Caminharemos sempre juntos. A minha gratidão. Abraço grande

  10. Cecília Vicente

    Muito aprendo com as tuas crónicas, elas são como livros para mim, o que leio vem confirmar o que ouvia contar como se fosse era uma vez…
    Talvez por isso, goste de ler livros que contam o antes, pois o agora, diferente, mas igual vou vivenciando de algum modo neste meu país à beira mar plantado. No que toca à politica cumpro o meu dever de cidadâ, não poderia ser de outro modo. Como humanista sigo a regra ” Dever é Arte, cumprir faz parte”
    Obrigada por muito que dás a ler, obrigada por tanto. Abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cecília. Sempre importantes os teus comentários. Sempre bom ler-te. A arte é uma arma importante para lutar contra a injustiça. A importância da cultura. A nossa vida a ser vivida. Muito grato. Abraço

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