Crónica de Jorge C Ferreira | Os acomodados

Crónica

 

Os acomodados
por Jorge C Ferreira

 

Há quem se acomode. Quem arranje um lugarzinho. Quem se vá calando, falando. E, no entanto, tanta coisa para falar a sério. Tanta coisa para reclamar. E tanta gente calada. Fico arrepiado ao lembrar-me de quem, antigamente, dizia: a minha política é o trabalho. Gente que sabia que a polícia levava presos os seus vizinhos.

Está um Major General a falar neste momento na televisão e já disse pertinente um ror de vezes. Fala-se de mísseis e contra mísseis. Da guerra e de uma coisa a que não vemos o fim. Daqui a pouco deve vir outro para falar de estratégias de combate. Sobre as forças no terreno. Falam sobre tudo e mais qualquer coisinha.

Chico, o teu Lula ganhou as eleições. Deves estar contente pá. Eu estou feliz com o teu livro assinado por ti na minha estante. O teu primeiro romance. E estou contente por um bronco homofóbico, racista, e armado em Trump de segunda, ter perdido as eleições. Espero que a festa seja bonita. Por vezes temos de escolher votar contra. Também já me aconteceu. Coisas da vida que tu tão bem sabes cantar.

A inflação é galopante. Sobem as taxas de juros. Quem está a pagar a casa para viver e criar os filhos está a sofrer. Neste país esquisito, em que se achou normal que cada pessoa devia ter a sua casa própria, acontece que o mercado de arrendamento é proibitivo. Que os estrangeiros até acham as coisas baratas. Que os AIRBNB expulsam dos bairros populares os antigos habitantes. Que não se vê ninguém com uma ideia clara sobre a cidade e a habitação. Há coisas que estão escritas na constituição e a quem ninguém liga.

capa jcf

Lembram-se do Sérgio Godinho? “A paz, o pão, habitação. Saúde, educação”. Sim o Sérgio tem razão. Estes são pilares essenciais numa sociedade justa. Esta é a essência da dignidade da vida. O ensino é de uma importância única. Só um povo culto é exigente. Falta a cultura que é outro pão que tentam afastar das pessoas. Sempre ouvi dizer que há senhores com poder que, quando ouvem falar de cultura, sacam logo da pistola. A vida só tem sentido quando dignifica a pessoa. A sociedade só é inteira  se todos tiverem o essencial para viver. Partimos com anos de atraso. Temos muito a recuperar. Não vamos desistir.

José Fanha, meu Amigo, também a mim me dói o peito. Sabes, isto por vezes dói mesmo. Olha, tenho saudades daquelas oficinas de poesia. Aquela biblioteca, nossa casa. Sim, por vezes, também me dói o peito. Já disse poesia no mesmo palco que tu. Que posso pedir mais? “Dr. Dói-me o peito”.

Zeca, só falámos duas vezes e, no entanto, foi uma marca para a vida. Os vampiros continuam por aí. Continuam a querer “chupar o sangue fresco da manada”. Os acomodados continuam a ser levados pelos amiguinhos para um lugarzinho. Um dia irão pagar o favor. Sim, se deixarmos, “eles comem tudo, comem tudo/ Eles comem tudo e não deixam nada”.

«Grandes conversas hoje. Sim senhor. E olha que tens razão.»

Fala de Isaurinda.

«Obrigado. Hoje estás muito cordata comigo.»

Respondo.

«Sim, mas olha que eu não tas perdoo. Tu sabes»

De novo Isaurinda e vai, um sorriso escancarado.

Jorge C Ferreira Outubro/2022(371)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


Leia também

29 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Os acomodados”

  1. Cecília Vicente

    O ontem, o hoje, presente e futuro, que dizer, ouvir, ouvir, contrariar, confirmar, que mais? As notícias , as guerras, as eleições, as falsas noticias, a humanidade a doença do mundo, os bons, e os maus, tudo a continuar. A bandeira do sangue, a outra, a verde a tentar ser hasteada, enfim, a desigualdade e a loucura de um ou outro louco que quer fazer história. Que mundo este, que gentalha anda no jogo do xadrez…
    Vamos por caminhos perigosos…
    Abraço meu amigo!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cecília. Tão bom o seu comentário. Estamos a viver tempos difíceis. Quase uma economia de guerra. Gente que morre sem saber porquê. A loucura instalada. Que a literatura nos salve. Abraço grande.

  2. Maria Matos

    Maria Matos. 14 Novembro 2022
    Que bela crónica… Magníficos os acomodados que não se acomodam. Os nomes que cita dizem tudo!
    Adorei.
    Obrigada pela óptima abordagem tão a propósito das “ últimas” notícias …

  3. Jorge C Ferreira

    Obrigado Fernanda. Tu sabes como é importante a tua presença aqui. Tens as mesmas dúvidas que eu. Ambos passámos os mesmos tempos e sabemos da importância dos que arriscavam mais. Temos de continuar enquanto tivermos força. A minha gratidão. Abraço grande

  4. Eulália Coutinho Pereira

    Crónica maravilhosa de quem não se acomoda. Viagem no tempo. Outros tempos, outras lutas, do Sérgio ao Zeca.
    Tempos diferentes estes que vivemos. Tantos acomodações. Tantos que fecham os olhos. Tantos que deixam passar. Tempo de desalento, mas nunca desistir.
    Obrigada Poeta por este alerta de consciência e estar sempre desse lado.
    Um grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Temos de continuar o caminho. Lembrar pelo que passámos. As nossaa lutas e os que eram como faróis. Nunca desistir. Abraço

  5. António Feliciano Pereira

    Boa tarde, Jorge!
    Aqueles que se acomodam deitam a toalha ao chão e não lutam mais. Não servem de exemplo para ninguém; sentem-se vitoriosos com um prato de lentilhas mal saboreado; entregaram-se ao que Deus quiser. E serão felizes assim? Duvido. Vão ter outras carências mais amargas e passam mal acomodados por inação.
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. Tão bem analisado. O vazio que sentimos quando não temos objectivos. Acreditar que é possível. Que vake a pena. Abraço

  6. Maria Luiza Caetano Caetano

    Gosto muito dos que sabem dizer. Como só os poetas sabem. Tudo o que diz, tem verdade e sentido.
    Gratidão meu Amigo, por abordar este momento, crítico e assustador.
    Abraço grande.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Sempre tão gratificante ler o que aqui escreve, saber que me lê. Tudo isso me dá vida. Tão generosa. Abraço

  7. Filomena Geraldes

    Pois quem não está acomodado são todos os que te seguem diária e semanalmente.
    Acho que a pouco e pouco estão a chegar. A dar-se conta que a tua crónica está muito bem escrita e faz uso de elementos inusuais.
    Enquadraste-a com excertos de poemas de homens da nossa vastíssima cultura e desse senhor, dono de um imenso talento, que dá pelo nome de Buarque.
    Pessoalmente penso que a crónica reflecte, inteligentemente, o momento crítico que atravessamos debruada a ponto pé de flor!
    Que mais poderiam desejar os teus atentos e inequívocos leitores? Eles são os teus fiéis seguidores que certamente aplaudirão, de pé, este mimo!
    Obrigada, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Sempre generosa. Tidas as vozes de que falas são uma força extra para o nosso caminho. Um caminho que faça sentido. O caminho para o belo. Todos os que fazem o favor de me seguir são âncoras que me sustentam. Gratidão. Abraço

  8. Claudina Silva

    Dissestes tudo o que sentimos querido Poeta. Não vamos desistir! A dor no peito é imensa! Como curar o nosso Mundo? Um abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Claudina. Muito, muto grato, pelo teu comentário, pela tua presença. Nunca desistir. Abraço

  9. Isabel Soares

    Uma crónica sociopolítica. Um dizer o que está mal. O que estava e continua. Um funcionamento socioeconômico que impede a revolta, que impede o pensamento. Um funcionamento sociocultural que alimenta uns à acomodação e obriga outros à mesma. Uma sociedade doente. Uma sociedade desumana.Uma sociedade violenta. Sobreviver é um feito. Viver uma ilusão. A solidão, o sofrimento e a impotência de quem aflora desvendar isto. De quem tenta dizer. Quem ouvirá?
    Uma crónica sofrida. O autor a revelar o “mesmo”. Em sofrimento e desalento. Uma vida que não se acomoda.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Que grande comentário. Uma análise onde tudo faz sentido. Conhecer os acontecimentos socilógicos. A força para ultrapassar os escolhos da vida. Saber sempre o que se quer do futuro. A minha gratidão. Abraço

  10. Augusto Carreira

    É á custa de quem trabalha e vive do seu salário, que as teorias económicas e seus executores, tratam a inflação.
    Se dizemos que á parte do capital também cabe acomodar esta inflação, aqui del-rei não pode ser porque as taxas de juro da nossa dívida sobem.
    Temos sindicatos na concertação social a assinar tudo o que o governo quer.
    Ora porta que é demais!
    Muito boa crónica ilustrando os dias de hoje.
    Parabéns e um abraço do teu amigo, Augusto Carreira

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Augusto. Querido Amigo de muitas lutas e caminhos. Começámos os dois muito jovens a perceber a descriminação, a exploração. Não nos conseguem enganar. Vamos continuar. A minha gratidão. Abraço grande

  11. Ivone Maria Pessoa Teles

    Meu querido Jorge, tudo tão verdadeiro, certo. O teu coração que Vive , mas sofre. Recorda os sonhos que tiveste, tantos tiveram . Sei que nunca desistirás . Vais deixar sementes em palavras e gestos, tão teus. Os que te conhecem seguirão os teus passos e as tuas palavras, sempre com sentido. Até a Isaurinda te dá razão. Gostei da tua crónica. Beijinhos .

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha querida Amiga/Irmã. É sempre tão bom estares aqui neste nosso espaço. As tuas palavras certas e certeiras. Nunca desistiremos, eu sei. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  12. Cristina Ferreira

    Compreendo porque a Isaurinda está tão cordata contigo. Tens tanta razão no que dizes.

    Abraço

    Cristina

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cristina. As tuas palavras sempre importantes. Sucintas e generosas. Muito grato. Abraço Amigo

  13. Lénea Bispo

    Há palavras e conceitos que já perderam o seu significado. A constituição não mudou , mas em alguns aspectos desajustou- se da realidade.
    Estamos a viver com dificuldades e sem esperança no futuro , pois as leis do capitalismo são mais fortes

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Lénea. Que bom estares neste espaço. Espaço que se quer de todos. Grato pelas tuas palavras que são tão acertadas. Mas não podemos deixar de lutar por uma sociedade mais justo. Há futuro ara além disto. Abraço grande

  14. maria fernanda morais aires gonçalves

    Ligo a televisão e não quero acreditar! quem são estes generais, coroneis e comandantes que sabem tanto da guerra e onde vão eles buscar tanta informaçao para nos baralhar? Falam-nos do mapa como se andassem por lá e para nós como se tivessemos vindos de lá ontem.. Todos os dias vem aí uma bomba nuclear e segundos depois já não vem. Lembro-me bem quando era criança, já tinha acabado a segunda guerra andava eu pasmada a olhar para o céu a ver quando é que caía uma bomba em cima de Torres Vedras e agora que estou a findar não se fala noutra coisa.
    Entretanto o preço das batatas, da carne, da fruta, das rendas de casa, enfim ,de tudo nunca custou tanto ao cidadão que está prestes a explodir, ou não?
    Saudades de Zeca Afonso e Sérgio Godinho!

  15. Fernanda Luís

    Caro Jorge
    Faço minhas as palavras da Isaurinda: “olha que até tens razão”.
    Identifico-me, às vezes imagino que o seu pensamento e palavras são o meu reflexo (😊).
    Bem haja para sempre.
    Aquele abraço inconformado
    Fernanda

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda Luís. Sempre bom ler aqui os seus comentários. Que o desassossego nos ajude a lutar por uma sociedade mais justa. A minha gratidão. Abraço grande

  16. José Luís Outono

    ” Num “sorriso escancarado” confesso-te a releitura do teu sonho de hoje e acordo-me em sentires que navegaram perto do teu traço de hoje.
    Directo, e pormenorizado no verbo revelar, assinas parágrafos ímpares, que até merecem o sorriso e o acordo de Isaurinda.
    Grato !!!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luís, poeta. Como é bom estares aqui. Sim, tu sabes do que falo. Vivemos todas estas coisas e estamos cá para o que der e vier. Grato. Abraço forte

Comments are closed.