Crónica de Jorge C Ferreira | Coisas da vida

Crónica

 

Coisas da vida
por Jorge C Ferreira

 

Há memórias que são manhãs iluminadas. Vertigens numa escarpa de vencer os medos. Lençóis brancos de um toque único. Estranhos quartos sempre fechados à chave. Pouco sabemos porque nos aparecem estes iluminados flashes. Essas manhãs em que, extasiados, nos oferecemos para o mais belo sacrifício. Somos a oferenda que não se quer agradecida. Naquela Ara deixamos parte da nossa vida. Assim nos damos a outra maneira de viver.

Somos sempre a vontade de renascer ao início de cada dia. Creio que cada dia é uma nova vida. Uma nova oportunidade. Todos os dias somos postos à prova. Todos os dias adormecemos acordados. Somos sonho e pesadelo. Adivinha e anedota. Somos tudo o que somos numa amálgama de desejos por cumprir.

Por vezes a dor, a agonia. A tristeza que nos invade o corpo todo. Coisas que não são só físicas. Coisas que se entranham no nosso pensar e nos castigam o caminhar. Sim, temos caminhos para calcorrear. Por vezes pedras desencontradas, os pés a ficarem despedaçados. Apesar de tudo, seguir a estrada. Talvez haja alguma luz. Porque este caminhar tem um fim. Todos sabemos que sim. Há quem não queira acreditar.

capa jcf

Tantas vezes somos a nuvem que nos persegue. Nosso chapéu para os sonhos mais estranhos. Uma nuvem que nos quer atabafar enquanto dormimos. Não, não é o algodão doce da nossa infância. Não se ouve a música do carrossel, nem vimos a girafa com o seu gigantesco pescoço. O poço da morte fechou. As motas calaram-se. Resta esta nossa luta com aquela assombrada nuvem. Tudo irá acabar num estremecer doloroso. Depois virá a calma e vamos esperar por outro acordar mais suave.

Quando os grossos cortinados se cerram é outro mundo que começa. Sabemos que há quem vá começar o seu dia quando as esquinas ficarem sombrias e as sombras meterem medo a muita gente. Os candeeiros a fazerem crescer alguma claridade. Algumas luzes ténues. Suaves brisas vindas de um mar que se faz ouvir. O trabalho nocturno. A nocturna forma de viver. Um pianista branco de tanta luz artificial continua a tocar. Pouca gente o ouve. Esvaziam-se copos e garrafas. Muitos prazeres acontecem. Nem sempre é mútua a satisfação.

O amor que nos abriga e por vezes nos mata. Cabana e prisão. Duplicidade de sensações. Por vezes não é amor, é sentimento de posse. É desejo e loucura. É o querer, o difícil de conseguir. É o não saber o que se quer.

As platónicas loucuras escritas no diário de uma casta donzela.  Um livro com cadeado. Coisas difíceis de descortinar. Os claustros de um convento onde se celebra o silêncio. Apenas os passos de quem tenta caminhar para a paz. Essa paz sempre tão ambicionada e nunca conseguida. Somos filhos de uma guerra por acabar. Acho que nisto viveremos até à guerra final. Assim caminhamos para a destruição total. Caminhemos em silêncio.

A vida a dissipar-se. Uma coisa natural. O envelhecimento. A perda de faculdades. Fazer tudo para contrariar o inevitável, mas deixar as rugas. Elas falam por nós. São o espelho de todas as nossas alegrias e tristezas. Das horas únicas. Dos momentos que nunca conseguiremos repetir. Nossa forma única de estar. Cada um diferente do outro. Assim nos vamos complementando. Assim, muitas vezes, tudo faz sentido.

Esta vida é tramada!

«Lá estás tu à volta dessas coisas estranhas que gostas de falar.»

Fala de Isaurinda.

«Um exercício sobre a vida. Tu nunca sentiste coisas destas?»

Respondo.

«Eu não tenho tempo, nem quero pensar nessas coisas. Chega-me o que chega.»

De novo Isaurinda e vai, leva cara de quem não gosta destas conversas.

Jorge C Ferreira Outubro/2022(367)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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22 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Coisas da vida”

  1. Maria Luiza Caetano Caetano

    “Coisas da vida.”
    Tão bem pensado e sentido o que diz sobre ela.
    “Creio que cada dia é uma nova vida.” É como diz e diz tão bem.
    Direi só, como é bela a sua Arte de escrever.
    É ímpar e admirável, este texto que connosco partilha e nos faz meditar.
    Bem-haja querido escritor. Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Ler os seus comentários tão generosos faz crescer em mim a vontade de escrever. A minha enorme gratidão. Abraço

  2. António Feliciano Pereira

    As fantasias que nos assaltam o pensamento e muitas vezes perduram até serem varridas da memória, trocadas por outras de nova ocasião.
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. Sim um albergue de coisas que connosco nascem e morrem. Muito grato por fazer parte deste espaço que também é seu. Abraço

  3. Regina Conde

    A vida feita de ciclos. Renascer a cada dia, vontade sentida com entusiasmo. Quantos dias as vinte e quatro horas não chegaram para viver os sonhos, sem disso termos tido consciência. O tempo passa e fica menor, as rugas são mais. Temos e devemos desejar sentir o que nos dá prazer, mesmo quando o esforço teima em contrariar. Ninguém conhece o minuto seguinte. Isaurinda, linda pensadora sem tempo para te alimentar conversas sobre coisas estranhas. Magnifica crónica de inteira lucidez. Abraço meu Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina, minha Amiga. Assim somos. Uma simbiose de mundos por desvendar. As sete vidas de um gato numa só. Gratidão pela tua presença. Abraço

  4. Filomena Geraldes

    São mesmo as coisas da vida!
    Que vida esta…
    Tu, arquitecto de palavras e ideias, montas o edifício do pensamento. Um prédio de muitos andares onde habitam o sentimento e o raciocínio.
    Subimos nesse elevador até onde queiras.
    No terceiro? Há uma jovem que padece por amor…
    No sexto? Um casal discute. As crianças assistem…
    No oitavo? A velha senhora despede-se da vida com um longuissimo suspiro…
    No décimo? Um homem atormenta-se. Perdeu o emprego. Como alimentar os filhos? Como assegurar-lhes um futuro?
    O que é isto senão Vida?
    Um precipício.
    O costume. O tédio.
    O enamoramento. A ilusão?
    O caminho. Quantas pontes? Muros?
    Casas em ruínas? Jardins sem vedações? Paragens de autocarro? Sítios ermos? Sem vivalma?
    Que vida é esta, caramba?
    A dor que se aloja. Dói.
    O dizer “Não! Nunca mais!”
    A espera por quem nunca chega.
    A visita adiada.
    O abraço que uniu e se transformou numa estátua de mármore.
    O mendigo com uma garrafa de vinho. Vazia.
    O condutor que esbraceja e insulta o outro.
    Os enamorados que se beijam no comboio.
    Uma visita a um museu. Num qualquer feriado
    O preparar da refeição. O que fazer hoje? Tachos e mais tachos.
    O juiz que profere a sentença. A medo?
    As contas por pagar.
    A notícia. A guerra continua…
    Que vida é esta, caramba?
    Se nós só queremos paz. É pedir muito? Paz. Pão. Justiça. Saúde. Educação. Igualdade.
    Que vida é esta, caramba?

    Um dos meus textos preferidos, Jorge.
    Sempre a surpreender. Agradavelmente.
    Sempre lúcido e pertinente.
    Inspirador e delicado.
    Directo. Frontal.
    Que estrela foi essa que te tocou na hora em que vieste a este mundo?

    1. Ferreira Jorge C

      Mena, minha Amiga das palavras bonitas. Obrigado. O que tu descobres e crias a partir das minhas palavras é pura magia. És enorme. Grato pelos teus belos textos e pela tua presença. Abraço

  5. Cecilia Vicente

    Todos nós gostariamos de usufruir da vida em forma de prosa, ou mesmo na arte de a pintar com as cores que desse significado à vivência escolhida ou predestinada… Seria agradável, uma utopia poética inantigível, como muitos dos sonhos que ficam por concretizar. Há e haverá sempre quem queira ser a nuvem negra que consegue nos surpreender com as cores cinzentas tirando-nos o sorriso e a alegria, afinal, viver é arte, o dever faz parte. Um grande abraço meu amigo, façamos das nossas escolhas o modo de viver, quem sabe?…

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cecília. É no teu comentário que a utopia nasce e cresce. Nunca a abandonemos. Sem ela morre uma vontade de viver. Grato por estares aqui. Abraço

  6. José Luís Outono

    “Creio que cada dia é uma nova vida”.
    Um sonho, um reflectir, um dizer, um marcar e o desenho vai nascendo no teu escrever de momentos, que esboçaste muito bem e ousas partilhar.
    Sensibilidade absoluta em cada parágrafo, onde desafias compassos de leituras em anseios marcantes de continuidade.
    O “livro com cadeado” é apenas um acto de segurança, e ” assim, muitas vezes, tudo faz sentido” .
    Perdoa-me o “namoro do teu criar”, mas mesmo em manhãs difíceis enleio-me em repetidas leituras , onde até o bom humor de Isaurinda faz nascer sorrisos únicos.
    Excelente, e boa continuidade.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís, amigo, poeta. Sim todosos dias nasce em nós uma nova vida, uma nova vontade. Vontade de sermos de novo. Como compreendes bem a vida! Grato pela tua presença. Abraço

  7. Maria Matos

    Maria Matos, 11 Setembro 2022
    Maravilhosa dissertação sobre a vida.
    Realista, com as alegrias e dores por que passamos.
    E como é bom acordarmos de manhã, e viver cada dia que passa, com todas as suas vicissitudes…
    Como com a chuva, oxalá passemos por entre as abertas. Nos momentos menos bons, tens-nos esperança e optimismo…
    A verdade é que somos instantes… que os vivamos com alegria!
    Um abraço, poeta amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Matos. Cada dia é uma nova página desse livro que é a nossa vida. Aí escrevemos todas as alegrias e desgraças. Assim tentamos sobreviver. Muito grato pela sua presença neste espaço. Abraço

  8. Isabel Soares

    Uma crónica muito, muito bonita . O autor assume uma escrita poética. E nesta pergunta-se e responde, simultaneamente,sobre si e sobre os outros. A realidade humana. O ser o mesmo e o seu contrário. A fragmentação singular quotidiana e o todo passado e naquela espelhado.
    É todo um texto sobre significado e significantes. Entra na esfera filosófica. Essa que nos obriga a perguntar e a permanecer nesse questionamento.
    O cronista parte de si para o fazer numa enxurrada de palavras belas. Uma crónica que vence o falhar a vida. Já que esta, ao limite, nos escapa sempre. Em nós, nos outros e entre nós e os outros. E neste hiato o escritor incisivo e nostálgico. Este sentimento que o preenche, mas também o distancia de si. Ele é sempre outro numa procura incessante pela sua mesmidade ( a escapar-lhe). Das “coisas da vida” à coisa que é a vida, na sua humanidade.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Vai sempre ao mais profundo do que eu escrevo. Fá-lo com uma grande mestria. Leva-nos para a interrogação filosófica. Para a busca do nosso eu. Afinal quantos vivem em nós? A minha profunda gratidão pelo seu comentário e pela sua presença. Abraço

  9. Branca Maria Ruas

    Tudo começa a fazer sentido quando vivemos muito mais do que ainda iremos viver. O apaziguamento chega tarde. Ou então temos que viver muito, e muito intensamente, até conseguirmos encaixar as peças todas.
    E depois do puzzle terminado, a vida continua mas reduzida ao que é verdadeiramente importante. E é nessa altura que percebemos que o essencial começa a escassear.
    Coisas da vida… É irónica, esta vida. E fascinante, também!
    Aproveitemos tudo de bom que ainda temos para viver. E espero que seja muito!
    Um forte abraço para ti, meu querido Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria, minha Amiga. Este plano inclinado em que já estou. Este descer da rampa. A vida a escassear e, no entanto, uma vontade imensa de viver. Vamos viver. Imensa a minha gratidão por tudo o que fazes e me dizes. Abraço

  10. Eulália Coutinho Pereira

    Extraordinária reflexão sobre a vida. A vida que se constrói e que nos constrói.
    Nada fazia mais sentido,neste momento da vida,em que, no hospital, aguardo a substituição da bateria da estimulação cerebral profunda, feita há quatro anos.
    Foi esta cirurgia que me fez ver a vida de forma diferente.
    Amanhã terei nova bateria e esperança de mais alguns anos, com a qualidade de vida possível.
    A verdade é que cada vez mais valorizo o momento presente.
    Obrigada Amigo, pelos seus textos e poemas.
    Escrita única.
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália,minha Amiga. A vida faz sentido. Nesta resposta só lhe voi desejar que tudo corra bem. Vai correr. Sempte a esperança a comandar a vida. Uma omensa gratidão pela sua presença aqui. Para a semana conversamos de novo. Abraço enorme

  11. A dor instala-se durante o caminhar da vida, crava-se nos nossos ossos e desenha-a em cada um deles com um prego ferrugento. Podemos voltar a sorrir e usar a máscara da nossa falta de vontade sem que ninguém o note, vem de brinde com o velho prego. Ninguém vê as cicatrizes que não expomos nem a dor alguma vez nos abandona.
    Aproveitemos os intervalos no respiro de paz que frequentemente acontecem entre as nossas passadas.
    Um abraço bommm querido amigo Jorge

    1. Ferreira Jorge C

      Ana, minha Amiga, escritora. Que alegria tão grande tter-te aqui. É tão bom o teu comentário. Somos sempre a vontade de viver, de vencer todos os obstáculos. Saber srmpre do outro é importante. A minha gratidão por seres quem és. Abraço

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