Crónica de Jorge C Ferreira | O que não fiz

Crónica

 

O que não fiz
por Jorge C Ferreira

 

Já vos contei tanto da minha vida que já devem estar cansados de mim. Já era tempo de vos contar o que nunca fiz. As coisas com que sonhei e nunca vieram a acontecer. Aquelas falhas em que a engrenagem da vida é fértil. Muitas vezes somos atropelados pelo que nos dizem que é correcto. Outras falta-nos a coragem para mudar de vida.

Sempre pensei, quando era novo, em ir viver para fora deste país amordaçado. Mas a família… Diziam: o desgosto que lhes ias dar. O tal emprego para a vida que hoje já não existe. Hoje vivemos no mundo da precariedade. No meu tempo havia essa ideia, um pouco errónea, que podíamos fazer uma carreira sem sair do nosso posto. Isso tinha um preço. Por vezes não responder ao que achávamos que estava mal. Dizer que sim. Não ser rebelde.

Sempre me achei rebelde. Tinha todas as características para dar o salto para a liberdade. Tinha amigos em Paris. Um deles escreveu-me cartas que nunca me chegaram. Tinha amigos em Londres. Ouvia os Beatles e dava-me vontade de partir. Lia alguma coisa sobre o maio de 68 e apetecia-me estar nas barricadas. Ir para a Sorbonne. Conhecer Sartre numa esplanada de Paris. Mas aparecia sempre uma voz em quem eu tinha toda a confiança: «tu, fica por aqui que tens um bom emprego.» Fui ficando.

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Como teria sido a minha vida num país livre? Que homem seria hoje? Estaria cá? Nunca o saberei. É esse o preço que temos a pagar por não arriscar. Era um tempo em que antes de ir à tropa não podíamos sair do país. Aqui vivíamos às ordens do velho das botas.

Chegou a tropa. Fui cortar o cabelo antes de iniciar a viagem para a recruta. O meu Avô e o meu Tio/Avô acompanharam-me. Foi aí que disse ao meu Avô que, se fosse mobilizado para a guerra colonial, desertaria. Aí sim, iria cumprir o meu desejo tão antigo. Fiz a tropa, quarenta meses, e saí sem ser mobilizado. Voltei ao meu antigo trabalho. A minha ideia tão antiga ficaria mais uma vez por cumprir.

Sentia-me cada vez pior neste cantinho à beira-mar plantado, como lhe usam chamar. Depois da tropa feita podia ter passaporte. A primeira viagem foi a Londres e uma vontade de não regressar cresceu em mim. No entanto havia sempre a voz do tal conselheiro a indicar-me outro caminho. Voltei lá em 1975 depois de casar a primeira vez. Só casei em liberdade. Aí, era a mim que me pediam explicações sobre o que estava a acontecer em Portugal. A revolução tinha tomado conta das ruas do meu país. Era tempo de regressar, de cometer erros e fazer coisas correctas. Muitas ainda hoje subsistem e são a nossa arqueologia de Abril.

Assim fui por cá ficando e resistindo. Sou o que sou. Como já vos disse, nunca saberei o que seria se tivesse tomado outro caminho.

Agora passo uns tempos em Inglaterra, outros em Espanha. E assim vou colmatando alguns desejos por realizar.

«Acho que fizeste bem em ficar.»

Fala de Isaurinda.

«Não sei, não.»

Respondo.

«Ouve o que te digo. Sabes o que estou a dizer.»

De novo Isaurinda e vai, o polegar para cima.

Jorge C Ferreira Setembro/2022 (365)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


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22 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | O que não fiz”

  1. António Feliciano Pereira

    Boa tarde, Jorge!
    Cometi a loucura de escrever ao Governador de Timor para ir para lá viver. Respondeu-me que não tinha vaga para mim na Administração Pública. Que loucura de atrevimento; deixei a família em pânico e agradeci a resposta. Fui à procura de trabalho e apenas recebi palmadinhas de conforto. São muitas histórias que não esqueço e acabei por ir trabalhar para a Função Pública: estava escrito!
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. O fascínio do Oriente. As terras do sem fim. Nunca saberemos o que teríamos sido. Vamos viver esta vida o melhor possível. Gratidão. Abraço

  2. Eulália Coutinho Pereira

    Excelente. O que não fiz. Uma pergunta que tantas vezes faço e para a qual não tenho resposta.
    A vida toma o rumo por pequenas e grandes decisões. Quero acreditar que fiz as melhores escolhas, embora muitas vezes tenha dúvidas.
    Estou grata por estar desse lado, por partilhar a sua escrita, por estes momentos de reflexão. Espalhar a sensibilidade de Poeta foi uma grande opção.
    Obrigada Amigo. Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Muitas vezes fizemos as coisas possíveis. Assim nos fomos costruindo. O resto é assinto arrumado. Grato pela sya presença. Abraço

  3. Maria Luiza Caetano Caetano

    Não me cansa o que escreve, os temas são sempre de prender a minha atenção, sejam sobre a sua vida ou não. E ela tem sido fonte de belas histórias. Algumas de grandes aventuras. Sempre uma escrita ímpar, tão sua tão própria como tão bem sabe. Seja prosa seja ou poema, encanta.
    Nunca iremos saber, como seria o que nunca vivemos, ou o que nunca fizemos. Nem mesmo a tropa lhe deu oportunidade de desertar.Que sorte e alegria nunca ter enfrentado, essa horrorosa guerra.
    Pela família, se deixou ficar por aqui. Mas a vida deu-lhe possibilidade de experimentar o que era viver noutros países. Sei que conhece muito mundo. Atrevo-me a fazer uma pergunta: Deste meio-mundo que conhece, sente pena de ter continuado neste pequeno cantinho? Se calhar sim. A desigualdade é cada dia maior.
    Lembrando Isaurinda, “acho que fez bem”.
    Hoje talvez não tivesse a sua escrita para ler. Nem os seus livros de poemas que me encantam.
    Realmente, só nos é dado saber do dia de hoje.
    Confesso que foi bom tê-lo encontrado aqui, querido escritor. É com prazer que o leio.
    Sempre grato, o meu abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luixa. Ê uma Amiga muito generosa. Adoro os seus comentários. Sim, o que não fizemos está arrumado numa das caixas que vivem connosco. A minha enorme gratidão. Abraço

  4. Filomena Geraldes

    Não foste, poeta.
    Ficaste. Por este pequeno e quantas vezes, esquecido país?
    Ficaste. A criar ninhos. A saber de amor.
    A dar azo a uma luta contra a ignorância, a servidão e o fascismo.
    Haverias de ir? Que outra vida?
    Que caminhos? Que demais encruzilhadas?
    Que díspares viagens para o desconhecido?
    Que lugares para arquitectar uma nova existência?
    Quem te diz que serias o homem que és hoje?
    Que terias descoberto a paixão pela escrita?
    Que te deixarias enfeitiçar pelo apelo das palavras?
    Que seriam eternos amantes? Tu e elas?
    Quem te diz que terias vivido o que viveste?
    Conhecido pessoas como as que contigo se aventuraram na alegria
    da amizade?
    Inaugurado o tempo das rotas, das leituras, das experiências e das saudades? Quem sabe?
    Não foste. Ficaste. Ainda bem!
    Construindo um mundo de sonhos que realizaste. Edificando amizades que se perpetuam. Alcançando talento, sucesso e reconhecimento.
    Mas sendo o mestre.
    Um poeta que humildemente aplaude os seus colegas da arte da escrita.
    Um verdadeiro senhor que não se vangloria e que continua nas suas lides, nessa labuta de amor e dor, nessa entrega, nessa dádiva. Por inteiro.
    Bem hajas. Não foste. Ficaste!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Sempre belos os teus comentários. É uma alegria contar com a tua presença neste espaço. Somos o que coseguimos ser. Não nos podem obrigar a mais. A minha profunda gratidão. Abraço

  5. Isabel Soares

    Hoje vou ser indecente para o cronista. Esta é uma crónica que sendo pessoal nos impele ao nosso próprio passado e percurso de vida. As palavras dezte autor são sempre deslumbrantes. Aqui a ambiguidade entre o que se fez e o que não se fez. Fez muito muito Jorge. Desculpe não conseguir comentar como me é habitual, mas escrever Sartre conduziu-me ao meu próprio percurso. Sartre, antes da faculdade um completo desconhecido e mesmo aí.
    . Mas só foi possível estudá-lo porque pessoas como o Jorge me abriram caminhos.
    França e etc. O que seriam, o que são ? Mesmo uma geração depois, digamos, existiam, existem, pessoas para quem o universo era minúsculo. Para além do local de vida e de nascimento não existia mais nada. E sim. Até muito tarde na vida. Felizmente que pessoas como o autor ficaram e possibilitaram caminhos e oportunidades. Obrigada pelas palavras pelo escrito, pelas acções e decisões. Sou quem sou ( seja lá o que isto for) por pessoas como o Jorge. Uma crónica que me fez chorar ( como outras) e reviver a minha infância e adolescência. Tão díspares do autor. Mas um futuro possibilitado por ele. “O que não fiz” foi o que me possibilitou ser hoje alguém… Emocionante demais para continuar… Obrigada!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. O cronista agradece essa “indecência”. Todos nós pensamos sempre no que podíamos ter feito e não fizemos. Assim nos construímos. Somos também fruto do nosso entorno. Muito grato. Abraço

  6. José Luís Outono

    Amigo, nunca cansarás a minha vontade de ler-te e sonhar com os compassos que traças do teu nascer e crescer.
    Sinto-me nas páginas do teu acto de construção e revejo-me em reflexões plenas de acordo … donde sobressai a minha vida militar , que acabou na Guiné. Tive o mesmo pensamento de desertar … caso fosse nomeado para essa missão, e cheguei a combinar parágrafos de como o fazer. No dia aprazado , com tudo pronto o meu pai confidenciou-me – Acredita que vais voltar, não queiras ser título de jornal . E voltei após o 25 de Abril de 74.
    Perdoa-me este desabafo, mas desde o dia em que te conheci que a amizade foi selada com um sorriso verdadeiro e o caminho acontece.
    Por razões várias, conheço o mundo … melhor muitos aeroportos e hotéis onde ficava para o trabalho a desenvolver … e quantas vezes voava e voltava em menos de 24 horas.
    Hoje ainda mantenho o sonho de partir, ficar … uns tempos e crescer em outras terras.
    Ler-te e reler-me são parágrafos únicos, onde crescemos com ou sem irregularidades, mas convictos de respirar a ousadia do não arrependimento.
    Excelente oferta da tua criatividade!
    Abraço muito grato!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís. Poeta e Amigo. Sim há pessoas que conhecemos por um olhar, um sorriso. Quanda há verdade no que fazemos, é fácil que nos compreendam. É sempre um gosto imenso ler aqui os teus comentários. Aqui estamos como nos fomos fazendo. Abraço

  7. Maria Matos

    26/09/2022. 00:02 Maria Matos
    “O que não fiz”
    Gostei muito da sua crónica. Jorge.
    Todos nós questionamos sobre isso. No meu caso, o percurso foi direito demais…Acabei o liceu, entrei para a Faculdade, depois de acabar o curso, tive que estagiar, que o fiz no H de Cascais, optei pela carreira da M Geral e Familiar… e não poderia seguir outra coisa. Opções. Mas fui muito feliz na minha profissão. Entretanto casei-me , tenho um filho maravilhoso, um neto lindo… e tive e tenho momentos de felicidade… não que seja cor de rosa , a minha vida.., Viajei aquilo que pude, ainda o faço sempre que posso….
    E eu a contar a minha história, que irritante!
    Em relação ao Jorge também o vejo um homem de família, a Isabel de quem tanto fala, a impecável e sempre com boas opiniões, a Isaurinda. E estar junto da família é um privilégio…. Sob esse aspecto sou simples e pragmática, não a trocaria por nada!
    Pena que não tenha o meu filho, nora e neto junto de mim… vivem em Inglaterra, mas é um pretexto, para os visitar… sempre que posso e eles a nós!
    Um abraco.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Matos. Somos fruto de uma série de circunstâncias. Por vezes parece que há caminho que se vai acabar por cumprir. O que poderíamos ter sido são coisas que guardamos em caixas especiais que, por vezes, teimamos em abrir. Muito grato pela sua presença aqui. Abraço

  8. Cecília Vicente

    Tanto de ti nesta crónica, muito terás guardado para contar. Não sei se te veria lá por longe, muito de ti era rebeldia, mas também idealista de paz e amor, não sei se o lenço ou a encharpe te definem como alguém de coração aberto, mas, também conquistador de lugares e regressos para puderes partir sempre que queiras, uma forma de revolução, descobrires nos outros o encanto e as suas utopias… Assim te vejo meu muito amigo Jorge. O meu abraço da também sonhadora de outros mundos…

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cecília. Que belo retrato me tiraste. Esse ocasional encontro num evento cultural. A cultura sempre. És um ser especial. Agradeço muito que me comentes neste espaço. Uma felicidade. Abraço

  9. Ivone Maria Pessoa Teles

    Gostei muito. Acredito que a maioria das “gentes “, pelo menos as mais criativas, pensam bastante no ” que poderia ter sido……..”. O que se fez, ou não” ; no que se escolheu e correu mal; e…e…e…e…( não cabe cá TUDO). Os desencontros são quase sempre mais do que os encontros e variam tanto!!! Depende muito do que nos foi dado VIVER. Mas, não estarão nestas interrogações, que a maioria pensa e ??????????, que a vida ” vai andando ” para que julguemos em cada instante que: ” podia ser melhor “, podia ser pior”, que, que, que……… Meu querido amigo, acho que vou pensar melhor. Os tempos estão escuros e muito desencontrados. Olha, sem qualquer hipocrisia, se não houvesse facebook, não estava agora a escrever estas linhas a um IRMÃO que encontrei, num querido AMIGO facebooquiano. Beijinhos amigos e carinhosos e, como diz a canção brasileira___” amanhã vai ser outro dia……” E lá vou, tem de ser. Mas prometo pensar, porque tu mereces.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga /Irmã. Tu conheces muito de mim. Sabes da minha inquietação e também da minha lealdade. Muitos de nós oensamos, muitas vezes, o que podíamos ter sido se… Tudo não passa de um exercício de criatividade. Adoro que eztejas aqui presente. Um abraço

  10. Raquel Lameirão

    Gostei tanto!! É ma reflexão que faço tanta vez, eu que deixei o trabalho para ser mãe a tempo inteiro, com quatro filhos, achámos de comum acordo que seria essa a melhorar opção…
    Sempre fui mãe, antes de qualquer outra coisa..
    Contido, penso muita vez(sem me arrepender) como poderia ter sido diferente a minha vida, se tivesse continuado a trabalhar fora de casa….

    A vida sempre nos dá alguma escolha, mas nunca saberemos se escolhemos o que era melhor, e assim sendo, o que escolhemos terá de ser a melhor opção!!
    Escolher a família é sempre gratificante, por isso estou do lado da Isaurinda,que bom que o Jorge ficou por cá, porque gosto da pessoa que é hoje!!!

    Muito obrigada pela crónica, que além de ser sempre muito agradável de ler, mais uma vez me fez refletir…..
    Boa noite e abraço!!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Raquel. Tidos nós fazemos, ou temos de fazer as nossas opções ao longo da vida. Todos sabemos que a felicidade plena não existe. Procuremos os momentos felizes. Estou muito feliz por estar neste espaço. Abraço

  11. Fernanda Luís

    “O que não fiz”
    Gostei da crónica amigo.
    Também me questiono muitas vezes sobre o que não fiz…
    Como seria hoje a minha pessoa e a minha vida se tivesse tomado outras opções possíveis?
    O meu alter ego é muito ativo, intenso… as tais vozes que nos acompanham.
    Não passa de um mero exercício mental ou vício de pensar, pois não me arrependo das opções que fiz e dos caminhos percorridos, alguns bem duros e traumáticos. Aprendi muito.
    Abraço Jorge

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. Muitos de nós nos questionamos sobre o que podíamos ter sido. Faz parte do pensar de quem se sente vivo. Mas são assuntos que devem estar bem resolvidos. Muito grato pela sua presença aqui. Abraço

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