Crónica de Mário de Sousa | Cronos devorator

Mario de Sousa

 

Crónica de Mário de Sousa
Cronos devorator

 

O avião da TAP preparava-se para aterrar. Viu os musseques e em fundo a baía de Luanda, resplandecente, feérica. Alexandre estava de regresso.

Lembrou-se da sua viagem no navio Niassa. No convés, quando a noite caía e o mar ganhava a cor do céu sempre que as nuvens destapavam a Lua, tentava contar as ondas e semicerrava os olhos, protegendo-os dos fulgores de prata que elas desprendiam. A proa do navio cortava o líquido espumando-o para os lados. Para trás, via uma esteira branca de águas revoltas manchando a imensidão verde escura. Chegou com 27 anos acabadinhos de fazer. Sentia-se empolgado, mas, ao mesmo tempo, receoso. Terra estranha, gente estranha, a guerra tinha começado com desaguisados em Luanda e assaltos e chacinas no Norte. E ele perguntava a si mesmo: e agora Alexandre?

Havia um mês que a Companhia de Seguros o tinha convidado para abrir uma agência em Luanda, cidade que crescia a olhos vistos e que prometia um terreno fértil a explorar. A comprová-lo, o número crescente de apólices que todas as semanas chegavam à sede em Lisboa. Mas era necessário coordenação e a presença direta da companhia era imprescindível. Proposta recebida, proposta aceite. Em menos de um ápice, viu-se embarcado num navio com destino a Luanda.

Ao desembarcar, sozinho a imaginar ruas de terra batida, matos, animais selvagens e pretos, muitos pretos, procurou o Sr. Albino, o agente mais importante da companhia em Luanda e foi pela sua mão que se deixou apaixonar por uma cidade cosmopolita, largas avenidas, muitos carros, comércio luxuriante e uma baía extraordinária. De mau apenas aqueles trinta e muitos graus muito húmidos. Mas Cucas e o marisco que as acompanhavam diluíam por completo o calor.

Dois anos passaram. A agência progrediu e Alexandre voava para Lisboa com frequência e agora ali estava a aterrar mais uma vez, naquela que já considerava a “sua cidade”. Mas fazia-o com uma ansiedade adolescente. A bordo tinha conhecido uma hospedeira com quem trocou alguns olhares. No tabuleiro do último snack deixou-lhe o seu cartão-de-visita.

Encontraram-se, travaram-se de amores e um dia Fernanda aterrou em Luanda e já não levantou voo. O casal, bem integrado na sociedade luandense, vivia uma vida de sonho que se completou com um rebento: a Aida Maria.

Com a chegada de Aidinha, Fernanda abdicou de muito da sua vida mundana e Alexandre, se no início recebeu a privação com agrado, com o passar do tempo começou a sentir que lhe faltava qualquer coisa na vida.

Estava-se no início dos anos 70. Luanda fervilhava de mundanidade. Alexandre com uma belíssima posição financeira, frequentava um salão de barbearia na baixa e foi lá que conheceu a Silinha, manicura, mulata que nem de encomenda poderia ter melhor estampa. Passou a fazer as unhas dia sim, dia não, depois uns serões na agência e por fim abriu para a Silinha um salão de cabeleireiro com três cadeiras, onde a nata da sociedade passou a ir esticar a carapinha.

Uma tarde, ao chegar a casa, abriu a porta e apareceu-lhe Alberto sorumbático. Desconfiou. Era sempre recebido com um riso de cara inteira como só os africanos sabem fazer. Perguntou por Fernanda. – A Sra. e a minina não estão.

Então? Perguntou Alexandre. Não estão porque foram embora…  respondeu Alberto.

Fernanda tinha pegado em Aida Maria e voado para Lisboa. Uns dias depois chegava uma carta de um advogado e o divórcio consumou-se. Era o preço do salão da Silinha.

Passado o choque Silinha ocupou o lugar de Fernanda. Mas os tempos estavam ruins. A entrada dos movimentos de libertação em Luanda gerou uma confusão tremenda. A violência gratuita e os desmandos subiram de tom. Os assaltos a residências e os tiros constantes aterrorizavam a população portuguesa. Num fim de tarde Silinha chegou a casa em pânico com escoriações na cara. Soldados da FNLA tinham assaltado o salão. Destruíram tudo e agrediram-na porque ela vivia com um branco. Era uma traidora.

Alexandre fechou a agência, avisou Lisboa e refugiou-se na cave com Silinha. Um dia de manhã acordou e estava sozinho. Silinha tinha desaparecido.

Resolveu também ele fugir. Meteu alguns pertences numa mala e numa bolsa de mão enfiou a escova de dentes, um dentífrico e um pente. Lembrou-se de levar também a sua dentadura sobressalente, mas com medo das verificações na alfândega, – pra’quê duas? Deixa ficar esta – resolveu embrulha-la num lencinho de cambraia bordada da Silinha, metê-la numa caixa e enviá-la por correio para a morada que tinha de Fernanda em Portugal.

Meteu-se num táxi, foi ao posto dos ainda CTT, enviou a encomenda e rumou ao aeroporto. Era o último dia da ponte aérea e não conseguiu voar para Lisboa. Recorreu ao balcão de uma companhia sul-africana e embarcou num voo para Joanesburgo. A mala ficou em Luanda.

Passou mais de um ano e Alexandre saia duma agência de viagens com um bilhete de avião na mão. Ao fim de muito labutar tinha juntado o dinheiro necessário para regressar a Lisboa. E foi numa manhã de um Agosto escaldante que aterrou no aeroporto da Portela. De imediato rumou para a morada da ex-mulher na Amadora, que não lhe iria negar ajuda. Chegado, tocou à campainha, mas ninguém atendou. Tocou mais uma, mais duas vezes e nada. Talvez estivesse enganado e tentou no andar ao lado. Abriu-se a porta do prédio e carregando a sua mala subiu devagar os três lanços de escada.

À porta apareceu-lhe uma mulher na casa dos sessenta, de robe e chinelos. Alexandre perguntou se no prédio morava Fernanda e a filha. –  Que sim, moravam sim, mas não estavam. Tinham saído de manhã cedo para o funeral do marido.

Alexandre sentiu as pernas vergarem-se. Então ela tinha casado e ele todos estes anos a mandar-lhe uma mesada, e ela a viver com outro fulano?

A vizinha solícita ainda lhe disse: o funeral é às 11 da manhã no cemitério da Amadora. Se tiver carro ainda lá chega a tempo.

Desceu as escadas amparado ao corrimão, apanhou um táxi e foi para o cemitério. Lá chegado não lhe foi difícil descobrir o funeral em questão. Aproximou-se e lá estava Fernanda de costas, apoiada no ombro de uma rapariga nova, Aidinha com certeza, ambas rodeadas de muitas pessoas que ele não conhecia. Talvez familiares do defunto.

Desconsolado com tudo o que estava a presenciar sentiu curiosidade em conhecer, ainda que morto, a cara do seu substituto. Aproximou-se devagar, insinuou-se pelo meio dos presentes e, já nas costas de Fernanda, espreitou para dentro da urna. Ficou pálido e a transpirar com o que viu.

Dentro da urna, em cima de um lencinho de cambraia bordado, uma dentadura parecia sorrir para todos os presentes.

 

Cronos devorator.[i]

 

Mafra, 11 de Setembro de 2022


[i] O Tempo devorador

 

Mário de Sousa


[i]Natália Correia, Comunicação, Biblioteca da censura – Edição fac-simile, Público Comunicação Social SA, 2022

[ii] Walt Whitman, Canto de Mim Mesmo, Biblioteca Editores Independentes, Sociedade Editora de Livros de Bolso, Lda., Lisboa (pp 143)

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