Crónica de Jorge C Ferreira | O Eterno Bar

Crónica

 

O Eterno Bar
por Jorge C Ferreira

 

Sempre que me lembro de certas coisas, lembro-me da voz sábia de Gonçalo Ribeiro Teles. Lembro-me de falar sobre as ribeiras que corriam em Lisboa na direcção do Tejo e que agora estão encanadas. O Tejo essa minha paixão. Depois vieram as cheias. Quando me lembro de Gonçalo Ribeiro Teles recordo-me sempre do Jardim da Gulbenkian. Esse espaço de alegria e prazer. Esse jardim onde muita gente se beijou e beija. Beijos sem fim. Um sítio onde tudo é perfeito. Um paraíso dentro da cidade.

Tudo isto me veio à cabeça quando me lembrei dos caminhos que fazíamos ao fim da tarde. Saíamos dos empregos e vínhamos desde os lugares mais díspares até ao Cais do Sodré. Até ao nosso British  Bar. Percorríamos os caminhos das antigas ribeiras por estradas de alcatrão. Chegávamos uns após outros e se faltava alguém tentávamos saber o que se passava. Era ali que fazíamos o nosso prolongamento e serão. Um bar à inglesa. A nossa mesa do costume e as bebidas que cada um escolhia. Já era hora de beber um gin-tónico, (Never before five), as imperiais e comer uns pãezinhos pequenos e deliciosos com queijo da ilha ou presunto.

capa jcf

Mas o mais importante eram as conversas. O desopilar do dia. A política do trabalho e o trabalho da política. Também as estórias mais estapafúrdias e as brincadeiras menos esperadas. Um amigo que também era caçador de caça grossa. Os artistas de teatro que nunca passaram de amadores. Escritores que nunca tinham escrito um livro. Políticos que nunca chegaram a deputados sequer. As bebidas iam seguindo o ritmo da conversa.

Lembro um par de namorados nossos amigos numa outra mesa. Sozinhos. Beijavam-se como se quisessem engolir-se um ao outro e riam-se de felicidade. Nós fingíamos que não víamos. Eles sabiam que o jogo era esse. No dia seguinte falávamos com eles como se nada tivesse acontecido. Nem uma palavra sequer sobre o dia anterior.

Entretanto noutras mesas outras tertúlias aconteciam. Algumas vezes escritores conhecidos bebiam o seu whisky em mesas marcadas pelo selo da escrita. Por vezes deitávamos o rabo do olho para tentar apanhar apenas o título da próxima obra de José Cardoso Pires e outros.

Naquele bar tudo se misturava. Estrangeiros e estrangeiras. Gente que por vezes bebia de mais. Um dia duas inglesas, já muito bem bebidas, saíram do bar por uma porta e apareceram a espreitar na outra porta. Foi quando uma delas gritou: «But, Rose is the same bar…» A risada foi geral e instantânea e a Rose e a amiga desapareceram em busca de outro bar, presumo.

Quando escurecia era tempo de ir. Diferentes caminhos iríamos seguir. Ia começar o tempo antes de um novo dia de trabalho.

Durante muito tempo, quando tinha encontro combinado neste bar, dizia a um colega que naquele dia ia sair porque tinha aula de inglês. Ele sempre acreditou até alguém lhe dizer onde eram as aulas.

«Era uma vida bonita, sim senhor! O que vale é que a Isabel ia muitas vezes contigo.»

Fala de Isaurinda.

«Eram escapes obrigatórios. Foram muitos anos naquela vida.»

Respondo.

«Sim, sim. E depois ainda vinham jantar ao Isaías.»

De novo Isaurinda e vai, uma gargalhada a esvoaçar.

Jorge C Ferreira Setembro/2022 (363)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


Leia também

26 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | O Eterno Bar”

  1. Maria Luiza Caetano Caetano

    Memórias sempre tão presentes em si, de momentos que viveu e tão bem nos descreve e partilha.
    Tão bonito lembrar, Gonçalo Ribeiro Teles. Tão sabiamente falava, mas poucos o ouviam.
    Que Jardim bonito nos deixou. Estar lá é como estar no Paraíso. Visto do interior do edifício da Gulbenkian, o cenário é deslumbrante.
    Tanto que esse bar, “muito British”, deve ter para contar (penso que ainda existe) há muito tempo que lá não passo. Lugar onde com os amigos se encontravam e desanuviavam o espírito, depois de um dia de trabalho. Sorri com o estado das duas inglesas. Uma um pouco mais pura, ainda conseguiu alertar a Rose. O bar era o mesmo!
    E que divertidas foram, as suas aulas de inglês.
    Hoje vou citar Isaurinda: “Era uma vida bonita, sim senhor! O que vale é que a Isabel ia muitas vezes contigo.”
    Adorei! A sua escrita é única, querido escritor que muito admiro. Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Sempre tão sábias as suas palavras. Uma alegria a sua generosa presença. É tudo como tão bem diz. Era um tempo muito importante o que passávamos naquele bar. A minha gratidão. Abraço enorme.

  2. Cecília Vicente

    Pois! Lisboa era vivência, era de amores e paixões, por ser a capital? Não creio, apesar de na capital do algarve sermos muito de verão e praia, quando chegava alguém de lisboa estranhava-mos o sotaque, achavam-mos chique e muitos tentam imitar. Coisas de adolescentes, pessoalmente a minha imaginação levava-me a princesas, a artistas de cinema e não às pessoas que comigo conviviam diariamente. Nunca me foi dada a liberdade do convívio, daí esta crónica para mim têm cheiro de ” Cravos”. Lá está a minha imaginação…
    Abraço meu muito amigo, Jorge.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cecília. A tua presença sem sotaque é sempre uma estória linda. Sim os cravos já tinham aparecido há muito. Abraço grande

  3. Regina Conde

    Falas das tuas vivências e despertas as nossas. Aconteceu ao ler a tua crónica. Várias imagens surgiram, algumas muito agradáveis. Descobrir a vida. Crónica de muitos contos. Uma vez mais a Isaurinda tem razão, a Isabel nem sempre estava ausente. Fico à tua espera, aqui no sítio habitual. Abraço querido Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina. Sempre arguta. As vivências de vários tempos. Que bom estares aqui. Abraço grande

  4. maria fernanda morais aires gonçalves

    Penso que a minha vida aqui já tinha dado a curva para outro lado, não situas bem o tempo mas são idos os 25 e os rumos estavam a tomar outros caminhos. O meu irmão tinha regressado de Moçambique e fomos todos viver para um apartamento às Amoreiras, Estava então a nascer o Centro Comercial. Para suportar as despesas tinha arranjado mais dois trabalhos, vendedora de enciclopédias ao fim de semana e ao fim do dia fazia a facturação num escritório. Ia para casa e fazia tarefas de casa. Tinha um colchão com colcha azul no chão em cima de uma carpete azul, as paredes azuis e um rádio comprado a prestações na calçada do combro onde ouvia 23ªhora todas as noites. Passei a namorar. até me casar e nessa criei o meu filho até aos 11 anos. O pai andava pelo país a fazer a Saúde Pública e o Serviço Médico à Periferia. Eu ficava com o bébé, as fraldas e o chapéu de chuva.A seguir ia picar o ponto. Mal dormida.
    Não tenho boas recordações desses tempos!
    Os meus irmãos cada um foi à sua vida, tiraram os seus cursos superiores e fizeram muito bem. Tenho muito orgulho neles.
    Foi pena não te ter encontrado para ir beber um copo!

    Um Abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. A tua vida é uma epopeia. És uma mulher inteira. Não calculas a honra de ter aqui comentários teus. Quanto ao bar, Abril já tinha passado. Abraço enorme

  5. Eulália Pereira Coutinho

    Bela crónica. Tempo de saudade. Memórias presentes de uma Lisboa distante.
    Tertúlias , escolas de vida fascinantes, que marcaram jovens sonhadores.
    Por momentos regressei ao escritório da Rua da Madalena, à Baixa Pombalina, aos Jardins de Lisboa.
    Saudade. Memórias nostálgicas de tempos tão belos.
    Obrigada Amigo, por estes tesouros de escrita única
    Grande Abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Também trabalhei nessa rua. Quando a baixa era um mundo. Aquele bar continua vivo. Diferente, mas vivo. A minha gratidão pela sua presença. Um grande abraço

  6. Filomena Geraldes

    Jorge.
    Crónica que nos leva a um dos
    teus refúgios, já as noite se tinham instalado.
    São recintos onde os amigos trocavam ideias, escapavam das cenas repetidas, dos dias monótonos e cansados de ser.
    Escapava-se a conversa para as coisas fúteis, os risos com e sem querer, o copo de álcool com pedras de gelo, as fáceis distracções e as fugas para os romances e as tragédias da vida.
    Ah, os bares…
    Onde se respirava nevoeiro, as evasões eram quase que obrigatórias, aconteciam amores abreviados ou não e, lá dentro,o lusco-fusco convidava a sonhos
    que não ficavam pendurados no bengaleiro.
    Estas tuas viagens são memórias de um tempo que foi um pouco de todos nós.
    Será que havia um pianista que tocava melodias em voga?
    Será que as bebidas surtiam o efeito desejado? Peregrinações por ilhas e
    outras florestas por desbravar?
    Será que essas noites tinham o condão de colorir a vida?
    Dar uma oportunidade às teias de diálogos fecundos, ao arrulhar dos enamoramentos e às amizades que
    ficaram unas e indissolúveis para reviver o passado?
    Será?
    Será?
    Será?
    Como é usual, nas tuas crónicas, fui e voltei. Ainda trago comigo o bafo a gin, a roupa a cheirar a tabaco, um intenso brilho nos olhos e o sorriso leve por esse beijo longo, húmido e adocicado….

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Sempre um prazer ler as tuas palavras. Este era um bar de fim de tarde. Um tempo de descontração depois da jornada de trabalho. Um tempo muito importante. Sei de tudo o que falas. Abraço forte

  7. António Feliciano Pereira

    Matando saudades, aqui e além, ao sabor do cenário das ruas.
    Avivar a memória do que nunca foi esquecido; apenas terá mudado o movimento das ruas e outros lugares de “pousio” agradáveis.
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. Uma alegria tê-lo aqui de novo. Foram tempos que não se repetem. Tudo mudou. Há novas vidas. Abraço forte

  8. Raquel Lameirão

    Que bonito o que escreveu Jorge….também eu lembro com saudade Gonçalo Ribeiro Teles…..
    Um privilégio esse convívio pós laboral….com tais protagonistas….
    Quem vivia na província (Santarém) como eu, não tinha tanta sorte….mas ainda assim a saudade desses anos vem……dos jardins cheios de namorados, dos seus recantos….da juventude que nos fazia parecer que a vida seria sempre fantástica……

    Obrigada…..abraço!!!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Raquel. As diferentes maneiras de acabar os dias e começar as noites sempre um prazer ler aqui as suas palavras. A minha gratidão.

      1. Ferreira Jorge C

        Abraço

      2. Raquel Lameirão

        Abraço!!!

  9. Isabel Soares

    Uma crónica de memórias:de um espaço , de pessoas, de acções num tempo de uma natureza diferente. Um inaugural na vertente socio-politica e cultural, mas tambem de transformação pessoal. E esta “imiscuindo-se naquela. Dela fazendo parte. Iniciando um futuro próprio e para as novas gerações. A rotina de uma vivência (s) a abrir portas e a conquistar um mundo novo ( ?!).
    Os afectos, os beijos e as raízesv sempre presentes. O amor fraterno, o romântico e o sensual acompanhando o protagonista que é o autor e apresentando-se, neste, cronista, como o motor da transformação. E sendo a essência da mesma.
    À primeira leitura é uma crónica ligeira, mas porque nos impela para as profundidades por detrás das palavras desvenda-se profunda e remete-nos a reflectir sobre a identidade e a mudança para outra desenhada naquele tempo. E, claro, para a singularidade de um homem que a viveu e contribuiu para a ruptura.
    Sempre a beleza das palavras. Num texto em que não me reconhecendo me remete para a possibilidade do que sou. Obrigada, ao actor e actores deste palco “revolucionário ” .

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Sempre importantes as suas palavras. Sempre a busca do que é de sublinhar. É um prazer lê-la. Grato. Abraço

  10. José Abambres

    revejo-me nessa cadência emprego,bar,conversas,imperiais,gin e depois logo se via após o anoitecer ! memórias bonitas

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Zé. Uma alegria ter-te por aqui. Foram os nossos tempos. A vida a acontecer. Grato. Abraço grande

  11. José Luís Outono

    Perco-me com orgulho na tua memória e “rebobino” a minha memória onde cruzamos caminhos e momentos do viver de “ontem”.
    A emoção toca-me e sorrio escondendo os olhos molhados de saudades ou alegrias ou mesmos disparates de certas páginas do calendário.
    Bravo pela tua memória, e ainda mais um grande aplauso por partilhares horas do relógio vida que te programou até hoje.
    Por favor … não pares!
    Um grande abraço, amigo que muito estimo e admiro!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís, Poeta. Que bom estares neste nosso espaço. Aqueles foram os nossos tempos. A vida era uma pressa. Muito grato. Abraço grande

  12. Ivone Maria Pessoa Teles

    Foste um belo ” gabiru “. Belo ainda és, mas a Isabel não deixa que tu abuses e faz muito bem. Não é difícil, por tanto do que tens escrito imaginar. Aliás, em Lisboa no Cais do Sodré e, noutras Cidades, noutros ” lugares de culto “, as cenas eram semelhantes. As raparigas não tinham essas ” frescuras “, mas tínhamos um grupo tão grande de amigos dos dois géneros ( o meu Pai, como a maioria da ” esquerda escondida ) eram pela co-educação.. Ainda hoje nos damos bem ( os que estamos vivos ) e há um pormenor engraçado: É uma relação muito familiar, mas não nos tratamos por ” TU”., enquanto tratamos por tu todos os amigos que vieram depois. Gostei de te ler, meu querido Amigo/Irmão. Beijinhos com muito carinho.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Era o tempo de muitas invenções. Aquele era um tempo importante para descomprimir. É sempre muito bom estares aqui presente. As tuas palavras são sempre importantes. A minha gratidão. Abraço imenso

Comments are closed.