Crónica de Alexandre Honrado – O que escrever quando é inútil a escrita (três)

Abril entre cravos: Alexandre Honrado

 

Crónica de Alexandre Honrado
O que escrever quando é inútil a escrita (três)

 

Dizer o indizível – será o segredo.

São Francisco[1], no Speculum perfectionis, afirma: “pois não serão os servidores de Deus senão uma espécie de jograis que têm por missão elevar o coração dos homens e conduzi-los à alegria do espírito?”.

Fernando Pessoa estabelece como “as palavras são focos de energia com efeitos invisíveis”[2].

Os exemplos seriam infinitos. Limito-os.

94287281 244481093365045 3530633129297444864 nNa formulação do espírito, a palavra do Poeta, em geral, é não reverente[3]. Isso pode torná-lo, em muitos casos, irreverente[4]. Aproveitando a analogia com o poeta João da Cruz[5] ocorre-nos a relação entre Cultura e Espiritualidade. “Os que se assemelham a nada/assemelham-se/a Deus…” . Este poema leva-nos a João da Cruz, como disse, pois da Cruz participa da consideração oriental de que Deus se vê (a si mesmo) no olhar do santo, igual ao que atua no comportamento do justo. Essa é a perfeição espiritual que propõe atingir a humildade, o amor e a sabedoria. Atrevemo-nos a dizer que o caminho para tal é o da Poesia, que sintetiza uma linha de pensamento tanto da santidade como da espiritualidade, passando do que é assunto privado e manifestamente consagrado à profundidade interior, capaz de chegar aos outros pelo Belo, sendo assim um eficaz legado doutrinal: a cultura que é a própria espiritualidade. O poema ao nível dos objetos de culto, ao lado das imagens, dos oratórios ou das relíquias, capaz de chegar ao Outro testemunhando o Divino e capacitando o Outro da Sua essência: o Poema como eco da Alma, o lugar mais próprio para Deus, ou, numa conceção mais ateia, o Poema como o outro lado do Real, o Poema como Metáfora, vitória do indizível, do irreal, do sentir.

Em suma, trata-se da cultura como criatividade e ambas – cultura e criatividade – como espiritualidade ou, melhor, como experiência interior. Em suma, para o crente (nos deuses) e para o não crente (nos mesmos deuses), a poesia pode ser uma profunda alegria. E, para quem estuda, uma forma peculiar de resistência. Ouso concluir em paráfrase, pedindo perdão a Adorno: “já não é possível escrever poesia depois de Auschwitz”, sem um novo grau de comprometimento. O que escrever quando é inútil a escrita? Nada que não seja do sentir.


[1] AUGUSTINE, Thompson, São Francisco de Assis
Uma Nova Biografia, ed. Casa das Letras, 2012

[2] Comentário de Pedro Teixeira da Mota in A Grande Alma Portuguesa – A carta ao Conde de Keyserling e doutros dois textos comentados por Pedro T. da Mota, edições Manuel Lencastre, Lisboa, Novembro 1988.

[3] N.A. Reverente, no sentido da ação de reverenciar aquilo considerado sagrado ou que se apresenta desta maneira.

[4] N.A. No sentido de ausência de reverência; também de falta de respeito ou de desacato.

[5] São João da Cruz, antes conhecido como Frei João de São Matias, juntamente com Frei António de Jesús Heredia, inicia a Reforma da sua Ordem, depois de um encontro esclarecedor com Teresa de Ávila que lhe fala sobre o projeto de estender a Reforma da Ordem Carmelita também aos padres, surgindo posteriormente os carmelitas descalços.

 

Alexandre Honrado


Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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