Crónica de Mário de Sousa | ’Douro, Faina Fluvial’ – O Quotidiano Profano

Mario de Sousa

 

Crónica de Mário de Sousa
’Douro, Faina Fluvial’ – O Quotidiano Profano

 

Fez no passado dia 5 de Abril sete anos que Manoel de Oliveira faleceu. Idolatrado por uns, amado por outros e odiado por muitos, a sua falta de consensualidade deve-se ao pouco conhecimento que temos do cinema de autor. Pouco antes da sua morte, num colóquio sobre cinema português na Universidade Aberta apresentei uma comunicação com o título ‘Douro Faina Fluvial’, ‘Acto da Primavera’: os quotidianos profano e religioso em Manoel de Oliveira’. É a 1.ª Parte dessa comunicação que partilho hoje aqui.

Quando, em 1929, Manoel de Oliveira na companhia de Aurélio Mendes, guarda-livros de profissão e fotógrafo nas horas vagas, começou as filmagens da sua primeira obra, já tinha visto ‘Berlim, Sinfonia de uma Capital’ de Walter Ruttman (1847-1941), um vanguardista do expressionismo alemão.
Algumas leituras e ecos do filme de Luis Buñuel (1900-1983) rodado em Paris, ‘L’Age d’Or’, arrastam-no também para uma atitude de simpatia por aquele surrealista espanhol.
É pois com uma visão expressionista, salpicada por um surrealismo emergente e marcado pelas sinfonias urbanas, que concebe e roda ‘Douro, faina fluvial’.
Embora mudo, o filme procurava através da montagem, uma sugestão musical muito forte, utilizando os choques de vários ritmos e sugestões sonoras marginais às imagens, era no seu silêncio, na sua esteticidade e no seu ritmo, que a música fluiria no imaginário do espectador.
A história do filme é simples. Resume-se à vida de uma jornada no Douro e começa com o rio a acordar, de mansinho, suave, e a luz de um farol a extinguir-se.

As águas revoltas da foz entram e refluem no rio, nervosas, lambendo as areias nas margens, afagando paredões dos cais onde as embarcações se encontram dormentes, amarrações distendidas, espreguiçando ao ritmo do nascer do sol…
Na foz, os primeiros barcos cachimbam rolos de fumos, enrodilhados em cinzentos e negros, navegando horizontes fora. Vão na contra luz do nascente; voltarão mais logo, pelo fim da jornada, aureolados pelo poente.
O formigueiro de gentes ainda estonteadas pelos calores dos leitos, agitam-se, ribeira abaixo, aguilhoando os bois, conquistando espaço na venda do peixe, arrebanhando as canastras, assaltando as embarcações, carregando de carvão as máquinas do vapor; e surgem os fumos dos arranques matinais, primeiro golfando, depois algodão branco em contínuo, que faz assobiar as caldeiras e rodar as hélices em turbilhão nas águas escuras e sedimentadas. Tem sangue grosso este rio. É a alma, dizem as gentes…
O bulício é enorme. Nos cais loteia-se o pescado que as mulheres vendem; acumulam-se os bacalhaus secos vindos da salga e descarregados dos lugres. Homens despejam nos bojos abertos dos porões, pesadas cargas transportadas ao dorso. Ao fundo é ao contrário; de outros bojos escuros, emergem alquebradas pelo peso, figuras magras, secas, arquejando ao peso das sacas que vão caindo nas carroças tiradas a bois. Depois, numa sociedade tácita, é a vez de as bestas puxarem as cangas, retesarem os músculos e arranhando com a força do casco, no escorregão das pedras polidas das rampas, içarem pesos descomunais até ao topo da muralha, por entre chiadeiras de veios gastos, quais queixas pelo esforço exigido. Os rapazes aguilhoam os animais, que sem mugir, avermelham os olhares esbugalhados e espumam dos beiços a raiva da dor e do esforço.

A jornada vai a meio. É a altura em que a turba se aquieta porque o interregno é ouro que irá doirar as forças para a metade restante da provação que aí vem. Todos largam a faina, e os barcos, parecem ficar a arfar, quietos, ondulando ao sabor do rio que os embala. É tempo da janta e ela é pródiga em chegar a todos, homens, mulheres, crianças, animais, não há excepção e é de deglutição rápida, porque importante, é no respaldo da refeição, a entrega ao esquecimento de toda esta dureza, bailando ao som da sanfona, dormitando ao calor do sol.
Também o burgo medievo de ruas estreitas e escuras, com o fumo a esgalgar-se por gargalos de chaminés ou pelas telhas vãs enegrecidas, estiola ao calor do sol como um formigueiro abandonado. Só as roupas, meios trapos enfunados por uma brisa suave dão vida aquelas paisagens. Elas e as pombas, que ao compasso das proas dos botes a beijarem a ondulação, debicam poeiras por entre as pedras negras do chão.
De repente, com o despertar atordoador do ruído das máquinas, tudo volta a mexer numa azáfama tão intensa como antes, e os corpos transpirados dos homens e das mulheres, inspiram agora com mais força, o pó negro do carvão que flutua no ar.
São criaturas de pernas rijas e pés descalços que calcam as pranchas de madeira que unem os barcos às pedras dos cais, esmagando as poeiras que atapetam o chão; são homens e mulheres embrutecidos pelo cansaço e que, numa atitude como que de vergonha, se jogam contra o trabalho, empurrando num esforço hercúleo o peso das cargas que lhes atiram para cima.
Finalmente o sol começa a baixar. Pela foz entram embarcações que se achegam às muralhas em busca de ninho para o descanso nocturno. As gentes vão parando lentamente e devagar, vão subindo as rampas em direcção ao burgo, voltando a insuflar vida ao casario todo o dia abandonado.
O farol, sai lentamente do seu bruxulear e acende-se, arrastando com ele o sol no seu ocaso. O dia termina suave tal como começou.

Não há rupturas, o mundo é visto de forma igualitária. As vidas das gentes do rio sofrem da ausência de um panteão de deuses em quem confiar, recusam a sacralidade do mundo, assumindo apenas e só, uma existência profana, livre de toda a experiência religiosa que rejeitam. Assim é o culto da sua liberdade.
Elas abrem espaços para as trocas e para as relações de improviso, e criam oportunidades de expressão da sua profanidade, pois não concebem a ideia do pecado e da santidade de Deus; por fim, rompem com as dualidades entre casa e família, trabalho e festa da vida, quotidiano e rio, em que o rio é o centro e a periferia das suas existências.
A margem e a foz, são os limites, a fronteira, o meio que opõe dois mundos e ao mesmo tempo o lugar de comunicação entre eles, porque sempre que é possível, eles interagem entre si, quebrando fronteiras, nunca franqueando a porta, porta essa que é o elo de ligação ao templo dos deuses que eles desconhecem.

Mafra, 25 de Maio de 2022

Mário de Sousa


Douro, Faina Fluvial (1931) – 18mn. P&B mudo – Sugere-se que retire o som do computador para o filme tal e qual Manoel de Oliveira o realizou.

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