Crónica de Jorge C Ferreira | Maio minha flor

Crónica

 

Maio minha flor
por Jorge C Ferreira

 

Como amo este meu Maio. Mês de flores abertas à vida. Mês de gritar a Liberdade desde o seu dia primeiro. Tanto foi o tempo em que esse dia era proibido de comemorar. Arriscar a ser preso. Cheguei a ouvir tiros no Rossio. Muitos eram presos “preventivamente” antes desse dia. Maio sempre foi luta, sangue, dor, mas também alegria, mais um passo para a liberdade inteira. Primeiro de Maio Dia do Trabalhador. Dia a reviver sempre.

Chegou Abril e o mundo abriu-se numa chuva de cravos. No primeiro de Maio seguinte a festa prometia. Juntámo-nos todos à porta do café que estava encerrado. Tudo fechou naquele dia. Fomos de mão dada com as namoradas. Dali à Alameda D. Afonso Henriques era um pulo. Fomos a pé e víamos cada vez mais gente a caminhar no mesmo sentido. Quando chegámos à Alameda uma multidão esperava por nós. Tanta gente, tanta vontade de mudar. Viam-se muitas lágrimas de alegria e muitos panos com palavras de ordem. Tudo tão espontâneo. Tudo tão vibrante.

Juntámo-nos ao desfile. Um mar de alegria a que não se via princípio nem fim. Nós todos muito juntos, muito agarrados. Não tínhamos uma bandeira, um cartaz, nada. Connosco desfilava um sorriso intenso e uma alegria que nos enchia o peito. Estávamos a viver uma etapa importante de uma liberdade anunciada. Não íamos deixar fugir a oportunidade. Muitos cravos caiam das janelas. Era uma festa imensa e única a que estávamos a viver.

capa jcf

O antigo Estádio da FNAT era agora o Estádio Primeiro de Maio. E pequeno para tanta gente. O campo pelado, na altura, estava coberto de gente entusiasmada.  Gritava-se muito: O POVO UNIDO NUNCA MAIS SERÁ VENCIDO e outras frases que gritávamos sem nos cansarmos. Havia felicidade espelhada nos rostos. Flores nos cabelos das mulheres e beijos e abraços há muito ansiados.

Quando tudo terminou regressámos ao ponto de partida a pensar no que fazer a seguir. Nem todos pensávamos igual, mas estávamos todos unidos por aquela festa que ficou marcada em nós para a vida. Aquilo que passámos a denominar de: O PRIMEIRO 1º DE MAIO. Essa festa imensa que ainda vive em nós.

Tudo foi tão intenso que, de vez em quando, me sinto obrigado a voltar a escrever sobre isto.

Assim aconteceu em 2017 num primeiro de Maio em que estava na minha outra rua no Reino de Valência, aqui deixo o texto que escrevi nesse dia:

Minha manhã inteira. Meu trabalho todo. Uma luta que cheirou a sangue. Maio. Maio de fogo florido. Primavera de muitas vidas. Houve tempos de choros e balas. Pontiagudas bestas a esventrarem a nobre gente.

Desfilam bandeiras sozinhas numa avenida de labaredas. Há palavras que soam de cansadas gargantas. Foi este o dia maior num ano de todas as comemorações. As mulheres deram o braço aos seus homens e choraram com eles flores encantadas.

Depois foram para casa e fizeram filhos. Os corpos nunca se tinham entregado tanto. Nunca a nudez tinha sido tão nua. Gritaram sem vergonha a alegria de terem o corpo do outro vestido do seu. Como foram festivas as madrugadas.

«Diz-me meu amor de quantos seios precisas para as tuas mãos?»

A liberdade da fala. A liberdade da vida. Fazer amor de luz acesa. Uma suave brisa a entrar pela janela entreaberta. Dançavam os leves cortinados. Os candeeiros cantavam novas claridades.

Como são belos os dias de longas noites!

Reino de Valência, Maio de 2017

«Foi tão bonito esse dia. Sentimo-nos tão livres.»

Fala de Isaurinda.

«Sim, foi tudo muito belo. Foi um povo abraçado de Norte a Sul do País.»

Respondo.

«Pois foi. O Povo Unido Nunca Mais Será Vencido.»

De Novo Isaurinda e vai, um sorriso enorme em ambas as mãos.

Jorge C Ferreira Maio/2022(348)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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18 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Maio minha flor”

  1. Maria Luiza Caetano Caetano

    Lindo meu amigo.
    O primeiro 1°de Maio, foi inesquecível foi único.Todos juntos com o mesmo sentir.
    Um povo unido, saboreando a Liberdade.
    E em liberdade, florescem as flores silvestres nos campos, que o mês de Maio nos oferece.
    LIBERDADE SEMPRE!
    Tão belo, o que escreveu na sua Rua, do Reino de Valência. Que bela memória, querido poeta. Adorei. Sempre me repito, é um prazer lê-lo.
    Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Foi um dia único. A liberdade a crescer nas gargantas. Foram muitos anos de medo. Beijinho

  2. Eulália Pereira Coutinho

    Belo. Viagem no tempo que ficará para sempre na memória.
    Vivi o 1⁰ de Maio de 1973 em Lisboa, no tempo em que era proibido comemorar o dia do trabalhador.
    Polícia em cada esquina, tiros, prisões.Nada era notícia, mas quem lá estava sabia. O clima era tenso.
    Um ano depois chegou Abril, mês de cravos vermelhos, mês da Liberdade.
    Chegou finalmente o primeiro 1⁰ de Maio há tanto esperado
    O povo saiu à rua. Houve festa em cada praça, em cada avenida. O Povo Unido Jamais Será Vencido era gritado em uníssono. O abraço era efusivo.
    Finalmente tínhamos o 1⁰ de Maio. Liberdade.
    Vivi-o em Leiria e jamais o esquecerei.
    Grande privilégio, o da nossa geração, poder viver estes momentos em plena juventude.
    Obrigada Amigo, por estar desse lado e por trazer à memória momentos inesquecíveis.
    Grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Também me lembro de 73. Do terror, dos tiros e da bestialidade. Em 1974 a Poesia saiu à rua. Os braços cresciam nos abraços apertados. Uma massa humana e unida. Abraço

  3. Isabel Campos

    Maio vermelho, livre, de novas lutas, de esperança, poesia e tantos sonhos para um mundo livre.

    Tu a dares voz a tantos, fazer a memória coletiva.

    O Povo unido jamais será vendido!!!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Tudo era novo. Tudo parecia possível. Unidos seríamos invencíveis. Abraço grande

  4. José Luís Outono

    Fabuloso esse sentir da vitória da Liberdade, frente a ditadores inqualificáveis.
    O mundo deste rectângulo à beira mar iodado mudou, mas começo a ter receios de outros gritos e atitudes preocupantes.
    Sobre o poema culto, determinado e erótico só encontro uma palavra, a exemplo de muitos trabalhos da tua mente e do teu aparo – Excelente!!!
    Grande abraço, e que as nuvens de poeiras provocadoras sejam apenas gritos sem continuidade.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís. Ainda somos muitos para defender a Liberdade. Vamos ser capazes. Grato. Abraço enorme

  5. António Feliciano Pereira

    Maio, mês da música, de afetos, mês da cor silvestre, mês que ajuda a refletir na sobre a vida, mês do amor e de tudo o que a Natureza nos dá.
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. Maio é um jardim. Aquele Maio valeu por uma vida e muitas lutas. Liberdade sempre. Abraço grande

  6. José Araújo

    Foi Boa a Festa Pá !
    Abril e maio Sempre !
    Grande abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Araújo. Foi a nossa festa Maior. Foi a celebração de Abril. A Liberdade a invadir o País. Grande abraço.

  7. Isabel Soares

    Uma bela crónica narrando um quotidiano feito mágico, pela possibilidade de, publicamente, ser, dizer e fazer colectiva e individualmente. Pela alteração de paradigma. O interdito ficou num passado inscrito visceralmente no autor. Subentendendo-se a luta e todo o suor e sangue derramado para alcançar outro tempo: o da liberdade. As batalhas encetadas, na clandestinidade, finalmente, conseguidas. Um crescer e uma vivência do próprio onde se inscreve a sua própria identidade. E, depois de “Abril”, Maio já com outro cheiro, outro futuro tão almejado. Um presente a despedir-se de um passado, trilhando agora outros caminhos com a ingenuidade e euforia de quem ainda infantilmente tacteia o inesperado e esperado dias. Finalmente, na voz do próprio, renasceu-se.
    As cicatrizes a quererem sarar no autor, porque houve que seguir em frente para um conhecido modelo mentalmente, mas vivencialmente desconhecido. O novo. A descoberta. A existência a acontecer com essência desejada.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Que bom o seu comentário. Foram muitos anos de luta que desaguaram em dias de liberdade intensa. Foi a festa imensa e alguma ingenuidade. Foram os dias maiores da nossa vida. Abraço

  8. Lénea Bispo

    A liberdade que conquistámos e que não vamos mais abdicar dela . Lutaremos para que se consolidem as nossas liberdades conquistadas num Abril de muitos cravos Tenho pena j de não ter vivido esse primeiro 1o de Maio na Alameda , pois estava longe , mas tenho a certeza de que quem o viveu , não mais o esquecerá .

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Lénea. Sim, minha Amiga, essa Liberdade é para ser defendida de cravo nos dentes. Foram dias memoráveis. Foi a pureza da Liberdade. Grande abraço

  9. Ivone Maria Pessoa Teles

    Meu querido amigo/irmão, obrigada por relembrares este dia. Aqui em Coimbra também foi magnífico. Para mim ainda teve um ” valor acrescentado “. Quando, após o 25 de Abril, fomos verificar as fichas da PIDE e ANP, eu iria ser presa nesse 1º Primeiro de Maio. Qua o meu crime? Estar na Comissão Pró-eleitoral de 1973 com responsabilidades na SEDE do MDP/CDE.
    Como sempre adorei a tua Crónica. Beijinhos

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado minha querida Amiga/Irmã. Quantas lutas, quantos sacrifícios, quantas prisões, quantas mortes para chegarmos àquele dia tão belo. Sempre foste uma lutadora. Um dia que merecemos. Beijinho

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