Crónica de Jorge C Ferreira | Abril e a vida

Crónica

 

Abril e a vida
por Jorge C Ferreira

 

Esta montanha-russa que é a nossa vida. Momentos que se sucedem a momentos. Noite e dias. O jogo do Sol e da Lua. Uma vez vi esta dança de astros ao largo da Ilha de Mikonos. Esse meu paraíso encantado. Fiquei a lacrimejar de espanto. Um espanto de sal e luz. O sem saber quem queria namorar quem. Lá, no fundo, admito que gostava que dessem um beijo e se fundissem num incêndio de amor.

Muitas vezes estamos eufóricos e, num repente, somos quase nada. Como se um interruptor nos quisesse desligar da vida. Mais que o medo, é a pena que nos assalta. Pena do que fica por fazer, de quem deixamos, da luz que nos ilumina. Do mar que percorremos. Esse azul sem fim. Essa perdição que, de tanta beleza e mistério, quase nos enlouquece.

É então que nos dizem para termos coragem, para enfrentarmos e lutar contra o desespero. Lembram-nos as madrugadas que trouxeram dias claros. Lembram-nos que há quem continue a descer a Avenida todos os anos. Dão-nos um cravo para nos acalmar. Ouvimos a “Grândola” e saímos para a rua. Abril é uma flor no calendário. Trinta dias de coragem. O início de uma outra aventura. Uma vida nova.

capa jcf

Nestas alturas há um filme que passa na nossa cabeça. Frame a frame vamos recordando a vida toda desde a mais antiga recordação. Nunca soube desde quando tive conhecimento da minha existência. Sei que já estive mais de uma vez sem saber de mim e, de repente, acordei. Sítios estranhos onde nos tiram a vida por um tempo, que não temos e não sabemos quantificar. Dá ideia que fomos fazer uma viagem que esquecemos. Que fomos abduzidos por gente estranha. A última recordação que ficou foi estar deitado numa cruz. Não, não me crucificaram! Estas estranhas provações que vamos ultrapassando vão deixando marcas. São como as pegadas que deixamos quando caminhamos na areia molhada à beira-mar. A maioria dessas marcas duram mais que uma maré, que uma onda mais irritada. Não há espuma para lavar tanta coisa. Temos arquivos e caixas que vamos fechando, ou não. Tudo depende de cada um. Há quem viva sempre agarrado à dureza de determinados acontecimentos. Há quem continue na guerra após 48 anos do seu fim. Há quem, em cada guerra que assista, se sinta de novo combatente. Cada um tem um mapa próprio para viver.

Quantas dores caladas passam por nós no mesmo passeio. Gente que não conhecemos. As tragédias que ignoramos. As desgraças que não vemos. Assim vamos passando pelo tempo num passeio sem sentido. Há quem antecipe tudo o que de mal pode acontecer e viva em eterno estado depressivo. Dores por antecipação. Dores profundas. Um cansaço que não passa.

Mas estamos em Abril e cheira a cravos vermelhos. Cheira a Liberdade. A extrema-direita perdeu em França. Muitos jovens desceram à rua. Muita gente de todos os lugares se juntou. Deve ser a esperança num futuro melhor que nos deve guiar. Só assim viver terá sentido. Promete ao teu amor que todos os dias 25 de Abril lhe vais aparecer com um cravo vermelho preso entre os dentes e depositá-lo na sua boca. E cumpre!

«As voltas que tu deste à vida para falar daquele dia lindo!»

Fala de Isaurinda.

«Sim, minha querida, porque a vida é isto tudo e mais alguma coisa.»

Respondo.

«Pois, mas hoje falavas de Abril e pronto.»

De novo Isaurinda e vai, um cravo na mão direita.

Jorge C Ferreira Maio/2022(347)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


Leia também

16 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Abril e a vida”

  1. António Feliciano Pereira

    A vida tem que ser sempre o motivo principal porque lutamos, com as armas que temos: a força da nossa razão sem desvalorizar a razão alheia, respeitando-a, nem que seja com uma flor silvestre!
    Faz bem ao âmago! Enaltece-nos!
    Um abraço, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado António. A vida é uma luta. Uma flor é o símbolo da nossa liberdade. A palavra a nossa arma. Abraço.

  2. Maria Luiza Caetano Caetano

    Fabuloso texto.
    Tão bela escrita, com tão bem expressa momentos marcantes da vida.
    Obrigada, pelo privilégio de ler o que tão bem escreve. Mesmo nesta belíssima prosa, está bem vincada a Arte poética.
    Que bonita deve ter sido essa dança, do Sol e da Lua.!
    Que os cravos vermelhos de Abril, “daquele dia lindo.” Como diz Isaurinda. Não seja esquecido.
    Liberdade Sempre!
    Adorei, querido escritor. Grata muito. Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Nunca iremos esquecer, (não podemos), aqueles cravos vermelhos que as armas dispararam naquele dia. Grato pelos seus comentários. Abraço

  3. Eulália Pereira Coutinho

    Excelente. Reflexão sobre a vida com toda a força e fragilidade.
    A vida que nos faz caminhar, cair, levantar, sair do abismo.
    A força de viver que nos faz dar saltos gigantes. As gavetas que vamos abrindo e fechando. Procuramos respostas. Algumas nunca chegam, outras põe-nos á prova. Dúvidas. Incertezas, abraços sem palavras.
    A vida e os seus mistérios.
    Como pode haver vida sem liberdade?
    Tanta luta e tanto esquecimento.
    25 de Abril sempre na memoria de quem o viveu.
    Grata Poeta da Liberdade, pela excelência da sua escrita. Grata por estar desse lado.
    Grande abraço, meu Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. A vida é um caminho cheio de encruzilhadas, escolhos, armadilhas. Temos de dar valor aos momentos felizes. Temos de contrariar a tendência para nos deixarmos cair. Grato. Abraço

  4. Isabel Soares

    Mais uma crónica talentosa onde se lê a ” fusão” entre a vivência visceral ( com todos os sentimentos e emoções que acarretam)e o acontecimento gigantesto e colectivo, que foi a revolução. Esta narrativa remete para um passado que possibilitou a liberdade, para um presente, a que se impõe recordar esse facto e continuar a lutar por esses valores e um futuro a construir e caminhar para uma democracia mais perfeita e , portanto, sem esquecer os valores que lhe estão subjacente. Também aponta para o discernimento cada vez mais lúcido para o verdadeiro espírito da liberdade. E para a intervenção das pessoas individual e colectivamente.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Somos a pessoa antes de sermos o colectivo. Vivemos momentos empolgantes que nos marcaram para sempre. Assim crescemos e nos fizemos gente. Como gostei da sua presença neste espaço. Abraço

      1. Isabel Soares

        Muito obrigada, Jorge! Fiquei sensibilizada. Somos antes do colectivo ou somos a par ou somos em alteridade?

        1. Ferreira Jorge C

          Obrigado Isabel. Acho que a nossa individualidade, a pessoa única que há em cada um de nós é que dá força ao colectivo.

  5. José Luís Outono

    Confesso. A tua habilidade a rever momentos do ontem, onde conjugas sentires fabulosos como se uma memória nunca envelhecesse e as páginas dos constantes diários estivessem sempre vivas.
    Por último, o lado marcante da Liberdade em análises fundamentais na defesa de uma democracia plena e florida em cravos vermelhos sempre amigos.
    Que bom este tom da tua escrita bem apelativa das leituras amigas.
    E o final dos diálogos com a Isaurinda são fabulosos … diria mesmo, simples no traçado da ousadia, mas igualmente “coloridos” na defesa de Abril.
    Grande abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís. Há momentos antigos que parecem sempre novos. Tudo depende do modo como os revivemos. Renascemos naquela madrugada. Acordámos novos. Temos de nos acordar todos os dias. Abraço

  6. Filomena Geraldes

    É um vai e vem. Somos sonâmbulos em “sonos” onde tudo pode acontecer. Miragens mágicas, festivais de comemorar a liberdade, enfrentar uma parede de cal ou um precipício. Estar virado de frente para a inércia, sentir o corpo estranhamente dorido, levar golpes de foice. Reduzirmo-nos a uma quase insignificância ou provocar o êxtase. Ampliar a euforia ou entrar num longo e sombrio corredor…
    Quantas vidas dentro de uma mesma vida?
    Quantos acenos, quantos abraços?
    Quantas algemas, quantas asas?
    Quantos gemidos, quantas risadas?
    Quantas solidões, quantas rodas de mãos dadas?
    O poeta levou-nos no seu carrossel. Ao “poço da morte”. A tocar o infinito.
    O poeta urdiu momentos tão diversos e antagónicos que nesse “sono” de sonâmbulos o acompanhámos.
    O que sabe o poeta do sortilégio das palavras? Tudo. É ele que cria os instantes. Que lhes dá vida. É ele o mago. O vidente.
    O homem das mil e uma faces. O ardiloso.
    O artesão das emoções. O senhor das facas e o guardador de rebanhos.
    Só o poeta nos faz despertar.
    Sorrindo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Que mais te posso dizer, para além, de que é tão belo o que escreveste. Só me resta agradecer vezes sem fim e não me cansar de te ler. Tão bom. Abraço

  7. Ivone Maria Pessoa Teles

    Que lindo texto. Palavras que não dizem tudo, mas nos levam a criar VIDA que, sim, tudo nos fazem adivinhar.
    Gosto do que escreves, meu amigo/ irmão. Contas que são pérolas para nós desfiarmos. Gostei muito.
    Beijinhos .

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Tento lembrar os momentos que nos marcam a vida. O percurso das alegrias e tristezas. O nosso caminhar. Grato por me acompanhares. Abraço grande

Comments are closed.