Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Peixe fresco

Licinia Quiterio

 

Peixe fresco
por Licínia Quitério

 

Claudino assomou ao patamar dos degraus de mármore que davam acesso ao piso inferior.

Havia um número considerável de fregueses na zona do peixe fresco. Um vozear de mulherio percorrendo as bancadas, avaliando tamanhos, preços, grau de frescura. Pareciam muito zangadas as mulheres. Não encontravam o que queriam e já iam na segunda volta. Poucos os homens, calados, dando só uma volta. Os vendedores gritavam, uns para os outros, com vozeirões de sotaque de mar,  arrastado. O chefe dos vendedores distribuia ordens a torto e a direito e respondia de vez em quando, só de vez em quando, a perguntas dos fregueses. Era um chefe que trabalhava muito, tanto que nunca parava de arranjar peixes grandes, médios, pequenos. Tinha uma faca enorme com que os cortava, sem olhar, com desprezo, a lâmina acertando quase sempre. Antes do corte, era a escamação feita igualmente sem olhar o peixe, como quem os sabe todos de cor. Arrepiadas pela ferramenta de longos bicos, as escamas saltavam, espalhavam-se, polvilhavam tudo em redor de vidrinhos baços. E subiam bem alto algumas delas, a avaliar pela quantidade que forrava o boné do chefe, um tanto descaído para trás a permitir que os vidrinhos também adornassem as melenas dianteiras. Escamados e cortados, os peixes eram atirados para um tanque, ligeiramente afastado do chefe que nunca saía do seu lugar. De vez em quando a água saltava do tanque, transbordava, salpicava a freguesia que dizia em coro: “Eh lá!” e dava um pequeno salto à rectaguarda.

Era esse o momento de acalmia por que Claudino esperava para descer a escada com os seus dois grandes sacos. O chefe viu-o, abriu os braços, sem largar a escamadeira, o peixe descansando sobre a bancada, e atirou no seu tom mais alto:

“Olha o senhor Claudino. Olha o senhor Claudino. Já tínhamos sentido a sua falta.”

“Estou de volta, amigo”.

”E bem, a ver pelo aspecto, senhor Claudino”.

Terminou a descida, sorridente:

“Aquilo é outro mundo, Amigo! Outro Mundo!”

“Não leva a mal se perguntar onde fica?”

“Na República, na República.”

Os olhos do chefe, por entre as escamas, eram duas interrogações. E o Senhor Claudino, perante a ignorância óbvia, explicitou:

“Dominicana, Amigo. Há outra?”

“Claro”, disse o chefe. “E peixinho há por lá muito?”

“Se há! O Amigo pode não acreditar, mas falámos lá em si muitas vezes por causa disso.” “Então valeu a pena?”

“Se valeu. Aquilo é outro mundo, outro mundo, digo-lhe eu.”

Um homem viajado, o senhor Claudino. Tinha estado na República. Fregueses daqueles contavam-se pelos dedos de uma mão. Tudo o resto uma pelintragem, voltas e mais voltas para levarem pouco e baratinho. Forrado de escamas, o chefe aviava o senhor Claudino do bom e do melhor e ia pensando:

“Raios me partam se um dia não vou também à República. Quando voltar nem me conhecem”.

Com o antebraço tirou uma escama que lhe saltou para o olho direito.

“E hei-de dizer bem alto: Aquilo é outro mundo, outro mundo.”

Mesmo por entre as escamas, um homem pode ter sonhos de viagens.

 

Licínia Quitério


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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