Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Os tostões

Licínia Quitério

 

Os tostões
por Licínia Quitério

 

Começo por dizer da caixinha vermelha, que fora do pó-de-arroz da minha mãe, com chinesas de sombrinhas abertas pintadas a negro. Gostava eu daquelas almofadas que elas traziam às costas e dos sapatos com duas tiras entre os dedos. A caixinha, que já não era de pó-de-arroz, servia de mealheiro das moedas pequeninas, escuras. Chamavam-se tostões e faziam parte da “demasia” que os meninos que faziam os recados entregavam à minha mãe. Ao fim da semana, já as demasias eram um montinho que dava aquele barulho engraçado quando eu agitava a caixa, com a tampa posta, de cima para baixo, traca-traca, traca-traca. A mãe dizia, vê lá não deixes cair que são para os pobrezinhos de sábado. A partir não sei de quando, na minha terra só havia pobrezinhos ao sábado. Imagino que eram os mesmos pobrezinhos de sexta-feira da terra vizinha a norte, e os da quinta-feira da terra vizinha ao sul e assim sucessivamente até chegarem de novo à minha terra que era a de ser pobre ao sábado. Por andarem tanto, de dia em dia da semana, a acertarem com as terras de ser pobre, por isso, julgava eu, apareciam sempre descalços, com os pés muito sujos, tão sujos que a minha mãe não lhes dizia para entrarem. Por isso e porque tinham piolhos, principalmente aquele que se coçava muito e a que puseram a alcunha de Migalhinhas.

Era eu que distribuía os tostões das demasias pelos pobrezinhos de sábado de manhã. Ainda me lembro das mãos deles, só das palmas, que era essa parte que eles me mostravam, viradas para cima, meias encurvadas, para apararem os tostões escuros, um bocado mais escuros que as palmas das mãos.  A minha mãe mandava-me sempre lavar as minhas mãos depois da distribuição das esmolas, que era assim que se chamava aos tostões que iam parar às palmas das mãos dos pobrezinhos.

Tenho saudades desse tempo. Não sei bem se das chinesas com almofadas nas costas, se do cheiro a azedo dos tostões, se do traca-traca da caixa para baixo e para cima e para cima e para baixo, se do sorriso da minha mãe. Sei que não tenho saudades, isso não, das palmas das mãos dos pobres das manhãs de sábado onde eu deitava tostões da caixa que já não era de pó-de-arroz.

Licínia Quitério


Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019). Participou nas Antologias de Poesia – Cintilações da Sombra 2 e 3; Clepsydra; A Norte do Futuro; 13 Poetas Portugueses Contemporâneos (bilingue). Publicou os seguintes livros de ficção –  Disco Rígido (contos); Disco Rígido (contos) – Volume II; Os Olhos de Aura (romance); A Metade de um Homem (romance); A Tribo (romance); Mala de Porão (romance). Tradução (do castelhano): O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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