Crónica de Alice Vieira | Nascer no Santo António

Alice Vieira

Nascer no Santo António
Por Alice Vieira

 

Quando chega o mês de Junho, o meu amigo Alberto conta sempre a mesma história.

Eu já não a posso ouvir, a Teresa (filha dele) muito menos– mas lá temos de fazer de conta que a ouvimos pela primeira vez e que a achamos de rir  às lágrimas

Tem a ver com o nascimento da Teresa, que só era esperada em Julho, mas foi sempre uma miúda muito apressada.

Quando chegou a noite de Santo António, o Alberto  ainda tentou levar a mulher mas ela desculpou-se,”estás parvo? com esta barriga?”

Mas disse-lhe que fosse ele.

A Teresa está sempre a dizer que a mãe devia ter pensado que ele ia responder  “ó querida, nem penses, fico aqui contigo, de mãozinhas dadas a ver televisão”—mas homem é homem, que é que se há de fazer.

E lá foi ele para os arraiais, com a recomendação da mulher de lhe trazer depois um manjerico com quadra apropriada.

Minutos depois de ele ter saído, marchava a mulher para as urgências, queixando-se de umas estranhas dores nas costas.

A enfermeira riu-se:

–São estranhas, são! É a sua criança que vem aí!

Horas depois entrava o Alberto nas urgências, esbaforido e de manjerico na mão, perguntando pela mulher, que ainda tinha tido tempo de lhe deixar um bilhete em cima da mesa da cozinha: “vou ao hospital, não demoro.”

Mas ninguém lhe sabia dar notícias, aquela tinha sido uma noite agitada.

Até que alguém lhe diz que ela está na sala de partos porque a criança se adiantara, mas ninguém lhe diz mais nada e

ele anda para trás e para a frente, de manjerico na mão, a perguntar a toda a gente, até a uma empregada de limpeza, que o afasta com maus modos, “ó homem deixe-me mas é limpar a porcaria que um bêbado fez  ali à frente!”

O Alberto não sabe o que fazer, ele que se preparara para ser um  pai exemplar, até tinha a máquina de filmar pronta para o grande dia, e agora nada, ali apanhado desprevenido, sem notícias.

Enfia a cabeça pelo guichet das informações a torna a pedir notícias, mas entretanto a enfermeira mudara e ele tem de dar outra vez todos os dados, e a enfermeira quer saber a que horas é que a doente entrou, e ele diz que não sabe, que só quando chegou a casa é que…

E a enfermeira rosna “estou a ver… a mulher em casa a trabalhar, e ele na farra!”.

O Alberto tenta defender-se, diz que não é bem assim, que a mulher estava grávida e que…

E a enfermeira dá então uma grande gargalhada, “a mulher a ter a criança e ele na rambóia!, meu Deus, os homens são todos iguais!”

O Alberto calou-se, cansado, cheio de calor, e acabou por se deixar cair numa cadeira e esperar.

Esperou horas.

Por aquela urgência já tinham passado cinco cabeças partidas, três costelas deslocadas, um pescoço com uma naifada, uma voz rouca que berrava “agarrem-me senão eu mato-a!”, amparada por outra que contrapunha” não ligues que são tudo intrigas da tua sogra!”

O parto da Teresa foi demorado: ela trazia o cordão umbilical à volta do pescoço, e teve de levar oxigénio.

Horas depois chegava o médico:

— Parabéns, tem ali uma bela rapariga,  que…

Mas o médico não disse mais nada: colarinho desapertado, descalço, e manjerico na mão, o Alberto dormia o sono dos justos.


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Atualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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