Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O senhor Leocádio

Licínia Quitério

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O senhor Leocádio
por Licínia Quitério

Quem havia de dizer que o senhor Leocádio também existe fora do seu sítio de pacotes, latas, frascos, caixas, todos de variados feitios, tamanhos, cores, a cada um o seu rótulo, o seu logótipo, o seu apelo mudo ao cliente, ao potencial cliente, ao curioso visitante, na oferta das bolachas, dos cogumelos, do atum, da margarina, do fiambre. Há que referir ainda os produtos frescos, e os secos, avulsos nas caixas, nas tulhas, para o cliente, o potencial cliente, avaliar a cor, a frescura, o cheiro, apalpa aqui, apalpa acolá, num desdém, num franzir de nariz, ó senhor Leocádio estas laranjas são boas, sim, minha senhora, muito docinhas, e, a senhora não pergunta, mas as clementinas também. É ali que o senhor Leocádio existe, de manhã à noite, por detrás do balcãozinho, com o seu pulover cinzento ou beige, a sua aliança de casamento, grossita, a rebrilhar na mão sapuda, aguardando os clientes, tão poucos que até dá pena, a sua loja é só para as faltas, hoje toda a gente vai aos super, hiper, mega mercados, sabe ele mas não o diz, que não é homem de lamentos, faz os dias como deus manda, melhores dias virão, sempre a socorrer-se de provérbios, de frases mais que feitas, atrás de tempo tempo vem, enquanto há vida há esperança, vamos dando o passo conforme a perna, para a frente é que é o caminho.

Pois hoje encontrei o senhor Leocádio na rua, a uns bons metros de distância da loja, olá minha senhora, eu nem queria acreditar na sobrevivência de um homem fora do seu sítio, viva senhor Leocádio, não o fazia por aqui, pois minha senhora às vezes também saio, apanhar um bocado de sol faz bem, pois claro, até logo, e lá se foi o senhor Leocádio, com o seu pulover cinzento, a sua aliança a rebrilhar desta vez ao sol da rua, e eu feita parva a olhá-lo, meio incrédula da existência dum homem fora do seu sítio de esperar quem já não vem, a esperança é a última a morrer, não se pode ter tudo, deus dá o frio conforme a roupa, já lá diziam os antigos.

Diria que o senhor Leocádio é a conformação em pessoa, não fossem aqueles suspiros cautelosos que o atravessam, enquanto faz a conta e olha a porta por onde cada dia entram menos clientes. Um dia atrás do outro, não é, senhor Leocádio?

 

Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019) – dois contos – Disco Rígido e Disco Rígido – Volume II – três romances – Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem e A Tribo – participações em antologias – Cintilações da Sombra 2; Cintilações da Sombra 3; Clepsydra – e uma tradução (do castelhano) O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

 


Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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