Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Notícias do Inverno

Licínia Quitério

Notícias do Inverno
por Licínia Quitério

Na penumbra da sala, veio-lhe à memória o primeiro nome dele. E logo os apelidos, três. O rosto magro, os olhos a trespassarem-lhe o corpo, os dedos esguios num toque suave na cintura, a fazerem-na estremecer, a voz ao ouvido, enquanto dançavam, numa saborosa clandestinidade. Foi há tanto tempo. Passaram décadas, cada um seguiu a sua vida, raras vezes tornaram a ver-se, um telefonema por uma morte, outro por outra morte. Foram somando mortes e filhos e netos. Da última vez que se viram, numa festa do liceu, ele tinha engordado, deixara de fumar porque as artérias tinham entupido e ameaçado o indesejável. Os olhos ainda lhe trespassaram o corpo, os dedos tocaram-lhe a cintura ao de leve, amável, a indicar-lhe o caminho, mas ela já não estremeceu.

Foi no dia em que voltou a casa e a encontrou invulgarmente fria que recordou o nome dele. Foi às agendas antigas, amarelecidas, guardadas na gaveta dos papéis inúteis, e procurou, procurou. O nome lá estava, o apelido em primeiro lugar, que ela sempre fora metódica nos seus apontamentos, um pouco esborratada a tinta pelas humidades do tempo, da casa, dos corpos. Um número de telefone à frente, esse bem legível, de poucos algarismos, que já teria sido mudado, acrescentado, decerto. Pediu ao neto que tentasse na internet saber o número actualizado. Ele ainda refilou, a afirmar a rebeldia, mas na mesma tarde telefonou-lhe. Tinham sido adicionados três algarismos, no princípio. O nome do assinante era o mesmo, sim senhora.

Hesitou bastante em ligar, achou-se velha tonta, julgou a ideia uma indignidade para com a memória do seu homem que partira há muito, pensou no que diria se fosse a mulher dele que atendesse, sentiu-se corada e menina, em clandestinidades de outrora.

Foi breve o diálogo, entrecortado por breves silêncios, de uma e de outra parte:

  • Desculpe, é de casa do senhor J G M T?

Uma voz jovem de mulher perguntou:

  • É, sim. Quem fala?

  • Uma velha amiga. Ele está?

  • Não, o avô não está.

  • Ah! Gostava de lhe falar. Fomos amigos há muitos anos.

  • Pois. O avô está agora num Lar. Se quiser, digo-lhe onde é. Tem visitas da parte da tarde.

Disse Ah! e desligou.

 

Com certeza os olhos dele já não lhe trespassariam o corpo, agora tão desajeitado, nem os dedos lhe guiariam a cintura que engrossara.  Nunca as danças se repetem. Só as dores.

 

Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019) – dois contos – Disco Rígido e Disco Rígido – Volume II – três romances – Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem e A Tribo – participações em antologias – Cintilações da Sombra 2; Cintilações da Sombra 3; Clepsydra – e uma tradução (do castelhano) O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

 


Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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