Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Notícias do Inverno

Licínia Quitério

Notícias do Inverno
por Licínia Quitério

Venho dar-te notícias do Inverno por aqui. Presumo que para ti continuem a não ter grande importância as estações do ano, já que passas por elas sem as nomeares, nem as aplaudires, nem as exaltares. Adivinho que continuas com o botão da camisa aberto, aquele junto ao pescoço, só um, que no Verão abres dois e assim contentas as pessoas que se admiram de não mudares de vestimenta. Eu não, eu continuo a ser a rapariga que tem muito frio, muito calor, que fala do tempo como qualquer britânico que se preze, que gosta das estações dos equinócios e não do Sol a pique, nem da neve. Nunca me esqueço daquela vez que subimos a uns dois ou três mil metros de uma montanha de um país, que hoje já nem se chama assim, e tu em mangas de camisa, e a quem te dizia, não tem frio, tu respondias muito naturalmente, estamos no Verão, e estávamos, assim diziam os calendários e o dia esplendoroso no sopé da montanha. É essa a tua lógica de viveres, eu sei, embora às vezes me aflija, sem saber se estás presente ou ausente, porque esse olhar está em todo o lado e em parte nenhuma e eu, sim, também sou de ausências, mas é diferente, eu sou mais presa aos dias, enquanto tu há muito te libertaste do incómodo dos objectos, das conversas vãs, das datas que toda a gente carrega como marcos de comemorações, alegres ou tristes, próximas ou distantes. Um dia também serei assim, como tu, ou como imagino que tu és, e isso será no Inverno em que estaremos juntos de novo, não neste ainda, que está carregado de frios e de troncos cinzentos, e era disso que eu te queria dar notícia ao começar esta carta, mas, tu bem dizes, miúda vamos ao que interessa, a abreviares o assunto, e fazes bem porque quando começo a falar nunca mais me calo. Pelo sim, pelo não, fecha o segundo botão da camisa.

 

Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019) – dois contos – Disco Rígido e Disco Rígido – Volume II – três romances – Os Olhos de Aura; A Metade de um Homem e A Tribo – participações em antologias – Cintilações da Sombra 2; Cintilações da Sombra 3; Clepsydra – e uma tradução (do castelhano) O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

 


Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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