Crónica de Jorge C Ferreira | Morrer aos 27

Jorge C Ferreira

Morrer aos 27
por Jorge C Ferreira

 

Os vícios. Os desvios e os desvarios. A porta fechada. A cabeça à roda. Um périplo por todas as experiências. O gostar de tudo ou o não gostar de nada. A fada madrinha a dar maus conselhos. Os olhos a ficarem desorbitados. Um flash e uma sensação de estar num estado sublime. Pensar que é sempre assim e depois cair num caldeirão incendiado de um vermelho vivo.

Uma guitarra e um solo único. Os dentes a morderem o aço das cordas. Uma vontade desatada de ser único. Procurar sempre mais e nunca ficar contente. A dentada que fere a boca. A guitarra destruída. Uma nova performance. Morar na casa do chifrudo. Vestir uma capa vermelha e sair à rua. O outro palco. O colchão de uma cama revoltada. Uma cama que pode ser leito de morte.

A da gadanha é traiçoeira. Sabe jogar vários jogos. Sabe esperar pelos erros alheios e aproveitar a jogada fatal. É a voz que se faz de gente de bem. Sopra suave aos ouvidos dos perdidos. É um jogo que pode demorar anos. Os danos vão-se acentuando no corpo do sinalizado. Tudo cada vez mais frágil. As defesas mais descuradas. Vale, muitas vezes, o instinto de sobrevivência. Que resta dentro de ti?

desaguo

Novo concerto. O corpo preparado para dar tudo. Uma nova harmonia, um novo cantar. Mais um hino. As coisas vão funcionando aos poucos. A guitarra é outra. Os sons são imensos. As escalas sucedem-se num tempo inusual. Os acordes finais são doridos, prolongados. A banda entra na loucura, o público também. A festa está instalada. O suor dos músicos tem várias cores. São restos de uma festa multicolor.

Os ensaios são a antecâmara da dormência. Todos se sentem irmãos e se tentam amparar numa corrida para o vazio.  Os olhos vão-se esvaziando. As noites são nervosos descansos. As veias queixam-se. O nariz arde. A garganta está quase bloqueada de calores calados. Há cheiros intensos em toda a casa. Nenhuma divisão se salva. O albergue está cheio.

Nas ruas passam pessoas normais. Pessoas que vão buscar a vida. É outro cansaço. Os transportes cheios. Já quase ninguém lê o jornal nos comboios, autocarros, metros, barcos. Um mudo silêncio. Um desgaste que gasta corpo e mente. Na estrada, mais tarde, passam carros de grande cilindrada. Ninguém se preocupa de onde vem tanto dinheiro. Que negócios são esses? Os fatos feitos por medida cheiram a pó.

O último concerto é acústico. A voz soa rouca e arrastada. Num banco ao lado um copo escuro. Um cigarro entalado nas cordas da guitarra. Mais um golo de líquido. Mais um cântico que o público acompanha. É já o público que canta. Estas coisas que fazemos nossas. O concerto está perto do fim. Prepara-se a apoteose. De novo uma música para o público cantar. Um golo de líquido, uma passa no cigarro.

Mais um que morreu aos 27. O choro da despedida e a imortalidade. Foi tão pouca a vida.

«Que coisa tão triste! Tu não tinhas mais nada para contar?»

Fala de Isaurinda.

«Hoje foi isto que me veio à cabeça. Os que morreram aos 27 anos.»

Respondo.

«Olha, devias falar era dos vivos. Deixa-te de cenas.»

De novo Isaurinda e vai, as mãos a abanar como se não entendesse nada.

Jorge C Ferreira Dezembro/2020(280)

Jorge C. Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado. Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence; Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019. Participou no livro de homenagem poética a Paul Celan – A Norte do Futuro. Editou em 2021

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14 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Morrer aos 27”

  1. isabel maria pinto soares torres

    Um texto encantador feito dos desencantos do quotidiano actual. Obrigada|

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Qua do a vida custa a passar, alguns dos que morreram aos 27 viveram muito mais tempo. Abraço

  2. Cecília Vicente

    Tudo é triste, a vida em fuga, ou a fuga da vida que passa como areia pelos dedos. Deixou castelos de areia por fazer, é destino, é fado…
    Vive e deixa viver, ou viver abruptamente como na roda da morte, o circo na cidade, há males a rondar, há medos que se escondem na noite, a noite com medo do dia, bem antes da madrugada…
    Crónica triste, como triste é a incerteza com que enfrentamos, ou tentamos aliarmo-nos à esperança. “Eles não sabem nem sonham”…
    Abraço meu amigo. Cuida-te, protege-te…

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Viver a vida a correr. A criatividade a ultrpassar o pensamento. Gente que não soube ordenar o viver. Abraço

  3. Eulália Pereira Coutinho

    Crónica excelente. A realidade dos tempos que correm. A verdade que muitos sentem e outros não querem ver.
    Uma teia envolvente que tolhe a liberdade. Ilusão . Busca da felicidade perdida .
    Partir com tanta vida por viver. Procurar o fim, antes do último concerto. Vozes que se apagam.
    Obrigada, meu amigo, pela excelência da sua escrita.
    Um abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Quantos acham que pouco mais têm a fazer. A vida a correr. Tanto talento desprezado. Acreditar na vida é necessário. Abraço

  4. ivone Teles

    Jorge, meu amigo/irmão. Fiquei arrepiada. Falas do que conheces e eu conheço o que falas . Conheço por assistir a estados desses de muito perto. Alguns a procurarem a libertação em terapias: uns filhos de amigos muito próximos, a degradação, famílias arruinadas; outros, mais à distância, mas familiares. Revivo momentos que só podem ser entendidos, quando se movem por perto. A música , tantas vezes a servir dum palco interior, onde há um sentimento de vitória. Sentirem-se heróis, Sentirem-se imortais. Olham os ” outros ” que labutam como pobres patetas que regressam dum mundo que os explora. Um mundo desigual que, para eles, é necessário para criar os filhos. À noite é um cansaço brutal que os adormece. As apoteoses, que os outros julgam ser vitórias, empurram-nos para a morte, ou uma vida mortal com sofrimentos brutais. Se não se conseguem livrar, a gadanha leva-os. 17, 27, 37, são idades para se VIVER e não para MORRER. Mas morrem, julgando ter encontrado a imortalidade, na vida mortal que levam. É como dizes, meu amigo Jorge, meu amigo/ irmão.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Quantos se abandonam com tanto para dar. Deixam-se ir num sonho sem futuro. Amar a visa é necessário. Beijinho grande

  5. Mena Geraldes

    Hoje a crónica teve um gosto amargo, Jorge. Um bafo de noite sem estrelas. Um espaço fechado onde o fumo é névoa. As vozes não se distinguem. Os corpos numa estranha dormência. Um copo a seguir ao outro. O som.
    O teclado.
    Um estado febril de vigilância.
    A noite não dá lugar ao sonho. É tudo ilusão. Simples ilusão. O mágico!

    “A da gadanha é traiçoeira”. Não previne. Não envia sinais de fumo. Não se dá por vencida. Aguarda. Encostada a uma qualquer parede.
    Ou sentada na cadeira da velha senhora.
    Aguarda. Entretendo-se com as lamúrias. Com queixas bolorentas. Corpos gastos. Corpos semi-vivos. Sonâmbulos.

    O espetáculo. As palmas. Uma última atuação. A derradeira. O sabor a sangue na boca. Acre.
    E ela é quem sabe. Só ela.
    Dá-lhe esse gosto.
    Quer vê-lo brilhar. Nem que seja esta a última vez.
    Ele agradece. A vénia. Um esgar. Um trejeito. Um piscar de olhos. Um adeus.
    Que público? Que palco? Que mentira? Que sonho?
    Que ilusão? Tudo termina.
    Num acordar. Ou não!

    Jorge.
    Tu és o mestre da batuta.
    Exímio. Hábil.
    O maestro.
    Caramba!
    Eu não queria entrar neste pesadelo. Mas como sempre, não consegui fugir. É uma teia. Todos estamos presos nela. Mais cedo ou mais tarde, será a nossa vez.
    Que venha! Vestida de vermelho. Insinuante.
    A fumar uma cigarrilha. Que venha!

    Aos 27?Aos 38? Aos 89?
    Ela é quem sabe, raios a partam!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Como sempre um belo texto. É necessário acreditar n futuro, no tanto que temos que fazer. É bom ter-te aqui. Abraço

  6. Branca Maria Ruas

    É sempre demasiado cedo para morrer quando existem sonhos por cumprir.
    É sempre demasiado cedo para morrer quando ainda se sente sede de vida.
    Mas a morte por vezes chega cedo de mais. E também há quem deseje que ela chegue.
    Não sei qual será a melhor altura para se morrer mas aos 27 não será, certamente!
    Espero que continuemos por aqui durante muitos mais ano. Tu a escrever, eu a ler e/ou comentar. E que a alegria de estarmos vivos nunca nos abandone!
    Um grande abraço

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Vamos tentar cumprir esse trato.de escrever eler. Eu também quero continuar a ler-te e a enviar-0te estes textos para tu opinares e corrigires.obrigado. Beijinhos

  7. Lília Tavares

    Jorge, gostei muito da tua crónica, apesar de triste, muito triste.
    Falas das coisas como se lá tivesses estado. As frases curtas, os aromas, os gestos, as dores, o começo do fim. E o fim. Não sei de quem falas, mas falas de tantos. 27 é um número bonito para se viver. Para morrer, nunca!
    Beijinho.
    lt

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Lília, já te disse em quem me inspirei para escrever sobre isto. Que maldição será essa. Tanto tempo para viver. Que bom estares por aqui. Abraço

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