Crónica de Alice Vieira | Chalés na serra

Alice Vieira

Chalés na serra
Por Alice Vieira

 

Estas últimas medidas do governo não são fáceis de seguir, eu sei ,mas a culpa não é do governo, a culpa é nossa. A culpa é de quem não cumpre o que é obrigatório

Ao lado de minha casa há uma clínica de animais. Pois quando eu saio de casa, cá fora está um magote de gente, ombro com ombro, muitos sem máscara, ou com a máscara no queixo, o que há-de servir de muito. Eu tenho de atravessar a rua para o outro passeio para me proteger.

Mais abaixo há um quiosque de revistas e jornais. Vou comprar o jornal–sim, eu ainda sou dos que compram jornais em papel…–e a senhora não tem máscara. Nem no queixo, nem no braço, em lado nenhum

“A senhora tem de usar máscara”, digo-lhe, o mais civilizadamente possível.

“Era o que faltava”, grita ela lá de dentro, “isso não faz nada , é só para eles ganharem dinheiro”

Então afasto-me e digo-lhe que vou comprar o jornal noutro sítio. E vou. Furiosa, claro.

Um amigo meu, que é pintor, inaugurou uma exposição com as suas últimas obras. Mas para evitar ajuntamentos, abriu num dia para quatro pessoas da família, noutro dia para quatro amigos, e assim por diante. Com certeza.

É claro que as pessoas têm de fazer pela vida. E há que aproveitar as ocasiões. Mas cumprindo a lei.

Vinha eu a sair da exposição desse meu amigo e apanhei um táxi ( não guio e ainda não me arrisco a viajar de metro nem de autocarro ). O motorista, muito simpático (e com máscara, claro) foi falando pelo caminho.  Que este recolher obrigatório vai ser uma chatice para muita gente, para os taxistas, por exemplo, que normalmente faturam mais à noite e aos fins de semana. Ele até já pensou em vender o táxi e reformar-se, mas o pior é que ele gosta muito daquilo que faz. Palavra puxa palavra , perguntou-me se eu andava muito de taxi. E eu disse que sim, nos casos em que não podia ir a pé, sim, procurava um taxi.

“Então fazemos assim : dou-lhe o meu número de telefone e, quando a senhora precisar de taxi, liga-me, e eu venho buscá-la e levo-a onde quiser. Só precisava que me avisasse com alguma antecedência. Pode ser?”

Digo-lhe que quando peço um táxi peço sempre de véspera, e pronto, firmámos o negócio, a mim dá-me jeito e ele sempre amealha mais uns cobres.

Dei-lhe também o meu número de telefone e o meu nome e, quando me largou à minha porta ainda tive direito a ouvir:

“Tem um lindo nome!”

Nem tudo é mau no recolher obrigatório.


Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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