Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Conversa de velhos

Licínia Quitério

Conversa de velhos
por Licínia Quitério

 

Agora tem tempo, não é como dantes, sempre numa corrida, trabalho, trabalho, trabalho, anos, muitos anos de dureza e pouco ganho. Já quase a despedir-se para a reforma, o corpo dorido, nenhuma esperança em melhor sorte, a preparar-se para os últimos anos da viagem, quando deus quiser que me leve, que já vi tudo o que há para ver, aconteceu o milagre, que ainda acontecem, segundo ele afirma de prova provada. A mulher muito o atenazava por causa daquela despesa todas as semanas, esperas que te saia, há horas de sorte, pois sim, sai-te do bolso para fora e tanta falta nos faz. Sempre a mesma lengalenga, o raio das mulheres são assim, dizia ele para o outro ancião que há muito não via, nem parece que moramos tão perto um do outro, mas cada um metido na sua toca, é a vida, pois, é a vida, e faziam uma pequena bolha de silêncio a desembrulhar lembranças de conhecidos de outros tempos que haviam de vir alimentar a conversa.

Lembras-te do Sebastião, então não havia de me lembrar, o gordo, sim, morreu a semana passada, não sabias, não, mas morreu de quê, de estar vivo, mas a sério, morreu de uma doença má que andava a miná-lo, já nem era o gordo, parecia um papelinho, magrinho e sem cor. Raio de doença, não há meio de descobrirem remédio para ela, o meu filho diz que já descobriram, mas andam a esconder, ora essa, a esconder, porquê, o dinheiro, homem, o malvado do dinheiro, olha eu nem quero falar disto, faz-me mal.

O Lecas da Emília, esse ainda cá está, mas é como se não estivesse, ora, está no lar, onde, ali, não, não é aí, é, ah já me lembro, agora varrem-se-me os nomes, a mim também, é a juventude, é, é. Não sabia, o Lecas, oh coitado, levei-lhe muito material para as obras, quando estava na Bobadense. Saudades não é bem, que eram muitas horas ao volante, a dormir pouco, carrega, descarrega, a alombar, as minhas costas que digam, farto de gastar dinheiro em fisioterapia, melhoras poucas, isto vai comigo para a cova.

Ó João, isto é mesmo conversa de velhos, dói aqui, dói ali, mas as mulheres são muito piores. Lá isso é uma verdade, algumas só falam de doenças, livra, muito elas gostam de falar de desgraças.

Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019) – dois contos – Disco Rígido e Disco Rígido – Volume II – três romances – Os Olhos de Aura;
A Metade de um Homem e A Tribo (em publicação) – participações em antologias – Cintilações da Sombra 2; Cintilações da Sombra 3; Clepsydra – e uma tradução (do castelhano) O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

 


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