Crónica de Jorge C Ferreira | Pensar

Jorge C Ferreira

Pensar
por Jorge C Ferreira

 

Não lhe preguntem os porquês. Sabe que gosta dele embora nunca o tenha visto. Acredita que ele existe. Acredita que todos temos uma alma gémea, um coração que bate como o nosso, um corpo que sofre e exulta ao mesmo tempo que o dela. Chega a atingir orgasmos que nunca pensou ter. Assim vive sozinha acreditando que alguém a acompanha. Uma eterna companhia.

São estes casos que me aguçam a vontade de pensar. Podem ser apenas elucubrações de gente que vive a sua vida num outro patamar. Há dimensões que desconhecemos. Somos seres muito complexos. Somos neurónios e neurónios a piscarem ordens. Somos a maior complexidade. Somos o quase desconhecido.

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Viver no corpo do outro. Sermos siameses e não estarmos ligados por nenhum órgão. Sentir o que o outro está a sentir. Ter um lado da cama fria e sentir que está lá alguém. A almofada quente na manhã seguinte, o que não queremos entender. O outro. O que quis marcar a sua presença. O que nunca vimos, apenas sentimos. Um sentir que, muitas vezes, não queremos acreditar. O não crer. O dizer não ao nunca provado.

Quantos estão em coma induzido? Que sentirão? Que ouvirão? Estão de borco. Numa incómoda posição. Alguns estão há meses. Um cansaço sem dores. As dores virão depois, se resistirem. É mais um sacrifício que lhes vai ser pedido. Será que saberão por onde andaram? Que caminhos percorreram enquanto estiveram num não estar? Quando começarão a andar e a sentir o novo mundo? Sim, muita coisa vai mudar. Muita já mudou.

Um trovador escreve uma canção para a sua amada que está presa numa torre de menagem. A sua voz ecoa através da floresta, atravessa a ponte levadiça e entra no castelo. Ela consegue ouvir algo que lhe dá força. Os amores proibidos. O castrar dos desejos. Um bordado por acabar e um enxoval guardado em arcas muito antigas. Roupas puras e cândidas para mulheres supostamente virgens. A vida por viver. Tanta roupa e tão pouca vida. Tanto casamento por interesse. O negócio a substituir o amor. As lágrimas em vez da alegria. Os quartos separados. As vidas desligadas.

O medo. O terrível medo que amortece as vontades. Os cuidados que matam os afectos. Os corpos ao alcance de um abraço, e tão longe. Tudo tão longe. O perigo imenso de tudo isto criar modos de vida cada vez menos solidários, menos afectuosos. As saudades a cresceram nas pessoas até a um quase transtorno. Que nos espera? Não esperem que no fim disto tudo vai ser igual.

Há indicadores de mais fome nas ruas. Não sabemos os números que tudo isto vai atingir. Não sabemos quantos vão vaguear perdidos pelas cidades. Tudo isto é global. Porque global se tornou o mundo. Quantos mundos sobrarão deste mundo? Quantas famílias vão ter as suas perdas? Quantos seremos no fim de tudo isto? Como seremos? Resistir, e depois? Muitas incógnitas. Provavelmente uma equação sem resolução.

Vamos cuidar de nós para cuidar dos outros. Vamos tentar resistir. Vamos tentar reinventar o mundo. Vamos amar a vida e todos os que são nossos companheiros nesta passagem por aqui. Uma caminhada que valha a pena.

«Olha que tu! Não havia nada mais esquisito para escrever?»

Fala de Isaurinda.

«Mas isto está tudo tão esquisito. Só me apetecia falar assim.»

Respondo.

«Para a semana viras tudo do avesso! Olha que isto até pode dar azar.»

De novo Isaurinda e vai, um ar zangado na mão fechada.

Jorge C Ferreira Novembro/2020(274)

Jorge C. Ferreira
Define-se a si mesmo como “escrevinhador” . Natural de Lisboa, trabalhou na banca, estando neste momento reformado.
Participou na Antologia Poética luso francófona: A Sombra do Silêncio/À Lombre du Silence;
Participou na Antologia poética Galaico/Portuguesa: Poetas do Reencontro
Publicou a sua primeira obra literária em 2019, “A Volta à Vida À Volta do Mundo” – Poética Editora 2019.

 


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20 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Pensar”

  1. Cecília Vicente

    Que mundo este o nosso e o dos outros, pensava existir um só mundo, mas não, existe dois mundos, quero acreditar desacreditando, por vezes, sinto a brisa e, com ela falo, sem resposta, apenas sinto a brisa como um leve abraço. Olho em volta, um leve aroma me enche o peito e o coração com razão desconhecida, apenas sim, apenas simplesmente sim…
    O outro mundo, o cruel em todos pertencemos sem darmos por isso acamamos a inércia de nada puder fazer, apenas fazem por nós, têm fardas estranhas, umas vezes anjos, outras vezes seres espaciais, um mundo novo, uns dizem ser há muito esperado, outros, dizem que é crime e castigo por nos portarmos indevidamente desumanos. Não dou conta, fecho-me num confinamento imposto umas vezes, outras vezes escolha pessoal, aliás, há muito tempo que ouso e abuso de escolhas pessoais, penso que a introspeção e meditação me trará algo positivo, penso, como sempre e todos os dias penso se existo… Aquele abraço meu sempre amigo Jorge, o poeta da intensidade, do escrevinhar, sonhador, de que tudo não passe de um sonho, e, sonhar, ainda nos é permitido ir às memórias…

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Que bonito o que escreveste. Tão gratificante ler o teu texto. És uma amiga generosa. É bom ter-te aqui. Abraço

  2. Susana Canais

    Que boa reflexão Jorge.
    O amplo mosaico que constrói o pensamento.
    O desconhecido que nos desafia, o amor que nos faz mover, os sentidos à flor da pele, as linhas ténues dos limites, os contratempos que nos doem, a esperança que não queremos que se apague e tantas outras coisas que nos percorre o pensamento e que marcam os dias. Um grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Suzana. Que bom comentário, que bom ter a sua presença neste espaço. Pensar é essencial. Abraço enorme

  3. António Feliciano de Oliveira Pereira

    De repente mudou-se o cenário e as nossas vidas passaram a ter novas cenas. Vamos ser o que ele quiser sem escolha prévia.
    Ninguém sabe que pele de “animal” vai vestir; que tiques vai ter; lembrar-se-á dos sonhos que viveu ou desejou?
    Um abraço, Jorge!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado António. A vida a mudar. Uma estranheza que se entranha. Que bom comentário. Abraço

  4. Branca Maria Ruas

    Pensar, pensar, pensar…
    Aquilo que já pensamos e o que nos fazes pensar.
    Não nos deixarmos levar por pensamentos que nos pesam. Optar pela leveza dos sonhos. Deixar-nos levar por essa magia de sentir sem tocar. Fazer do longe perto. Saber estar só sem nunca nos sentirmos sós. Não pararmos de nos encantar. Pensar e sentir que o sonho comanda a vida.
    E tu não nos fazes só pensar. Tu ajudas a sonhar!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria. Que belo o que escreveste. Sabes o que te estou grato. Vamos pensar e sonhar. Abraço.

  5. Regina Conde

    Excelente crónica feita de textos de vida. Bonito início. Os amigos imaginários. Os amigos que se vão juntanto. Os afectos que nos salvam. O que aí vem, não vem por bem. Não devemos afastarmo-nos. Superar as saudades, reviver o que nos fará viver. Jorge, deixo-te um abraço. Até para a semana meu Amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Todos temos amigos imaginários. Amigos que nunca falham. Os afectos são o que nos ajuda a resistir. Abraço

  6. Manuela Moniz

    Que maravilha de texto, Jorge!
    O conforto indescritível que é ler um texto, apesar deste tempo de tormento, e dizer – aqui está escrito o muito que eu penso, que eu sinto, o muito do que eu sou…
    Os meus medos de criança, medos pueris, como diziam as minhas duas irmãs com muitos mais anos que eu, voltaram de novo: medo do escuro, de me sentir só, dos sinais sonoros de alarme, dos funerais, das tempestades, das lágrimas nos olhos dos outros que ne faziam chorar, também, dos mascarados, dos assobios dos meus irmãos, como sinal de paragem, quando eu só queria brincar, correr e saltar na rua. A estes medos acrescentei muitos mais, neste tempo de todas as inseguranças.
    Um grande abraço e obrigada, meu amigo. Porque… do princípio ao fim, o que interessa,mesmo, é o AMOR.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Manuela. Sim, o importante é o Amor. Tens de te superar, vencer os medos. Deixar que os sonhos belos te surpreenderam. Lindo comentário. Grato pela tua presença. Abraço.

  7. Cristina

    De uma beleza única esta delicada crónica.
    Há emoções, sentires, que não se explicam.
    Obrigada por este belíssimo momento, querido Jorge.
    Abraço de muita ternura
    Cristina

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cristina. Tu és também tão delicada nos teus comentários. Tens sempre a ternura à flor da pele. Abraço

  8. ivone Teles

    Gostei imenso e li uma e outra vez. Mas já me não lembrava de querer comentar e não encontrar palavras. Vou fazê-lo a partir das tuas. Houve tempos em que, mesmo nas tuas publicações, comentava assim. ” Somos muito complexos. Somos o quase desconhecido. Sou uma pessoa totalmente(?) descrente de outras vidas paralelas. Interrogo-me, sim, tantas as coincidências de que falas e que eu tenho desde bem novinha. Gozavam comigo, Continua o telefone tocar e eu dizer: ” deve ser X “. Porque estava à espera? Não, mas o nome chegou à minha cabeça. Este é um simples exemplo com pequena importância. Mas são sinais. Eu, desde que te conheci pessoalmente, parecia conhecer-te, desde o sempre. Daí seres meu Amigo/ Irmão Quem sabe? ( Quem me conhece, se tiver acesso ao que aqui escrevi, dirão: ” coitada, pirou “. Mas acho que tens muita razão e gostei muito. Beijinhos ternos. <3 <3 .

    1. Eulália Pereira Coutinho

      Extraordinária esta crónica.
      Li e voltei a ler. Tanta coisa para dizer se tivesse o dom da escrita.
      Nestes tempos conturbados que enfrentamos, cada vez há mais perguntas sem resposta. Nada é certo. Ninguém sabe o que vem depois.
      Acredito que temos uma alma gêmea, perto ou longe. Não a vemos mas sentimos. Ou é sonho?
      Nada vai ser igual. Tudo está cada vez mais desigual.
      Lutar por um mundo melhor começa a pertencer ao passado.
      O poder ignora os valores humanos. O medo instala -se. Os afectos diluem-se no meio desta tempestade. A máscara veio para ficar. Só nos resta resistir.
      Obrigada meu amigo por estar desse lado.
      Continue a cuidar-se bem e presentear-nos com a excelência da sua escrita.
      Um grande abraço.

      1. Jorge C Ferreira

        Obrigado Eulália. O seu comentário é brilhante. Seria uma conversa sem fim. Tentar descobrir o outro é o modo de nos descrobirmos. A minha gratidão num Abraço.

    2. Jorge C Ferreira

      Obrigado Ivone. Tu és uma pessoa especial. Assim o senti semore. A tua ternura a tua disponibilidade para ajudar. Por algo és tocada. Grande abraço.

  9. Lília Tavares

    Querido amigo Jorge, há solidões partilhadas ao longe que temos dificuldade de compreender.
    Solidões antigas, muitas vezes impostas. Vidas que não se deram, mesmo andando pelos mesmos lugares de uma casa, pernoitando e ‘vivendo’ juntas.
    Sempre houve receios, impedimentos, solidão. Inércia emocional, muita.
    Num mundo globalmente desarrumado, doente, cheio de morte no pensamento, ai como temos de ter força para não partir à deriva num desnorte sem ida e volta?
    Penso muito, como todos. Tento não me focar muito tempo numa palavra ou assunto que me corroa. Procuro rir-me dos meus actos falhados, mas receio a agressividade face aos meus erros daqueles que andam sem norte. Nunca conduzi com tanto cuidado, tentando evitar encontros de 3º grau com alguém mal resolvido ou aflito.
    Helena, uma querida amiga valiosa e valente ficou viúva (inesperadamente?) na semana passada. Diz-me que, apesar da dor, chegou o tempo de celebrar a tremenda alegria e inspiração que foi viver com o Luís Miguel durante cerca de 40 anos.
    Quando o amor e a dádiva fazem frente ao tremendo egoísmo humano, só posso sentir paz.
    Belo texto.
    Grande abraço, querido amigo!
    LT

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Lília. Tão bom e intenso o que escreveste. Espero que este espaço seja lido com atenção. Vamos ter coragem e vamos continuar a escrever. Um abraço enorme

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