Almanaque Legal | Nuno Cardoso Ribeiro – «Vê o que me obrigaste a fazer: poder, controlo e violência doméstica»

ALMANAQUE LEGAL

«Vê o que me obrigaste a fazer: poder, controlo e violência doméstica»
por Nuno Cardoso Ribeiro

 

O livro que dá o título a este artigo, da autoria da australiana Jess Hill, não foi ainda publicado entre nós, pelo que apenas é possível adquirir a versão original em língua inglesa. Trata-se de uma investigação recente, no âmbito da violência doméstica, que recolhe depoimentos de vítimas, agressores, técnicos de serviço social e da área da justiça.

A publicação, que ganhou já vários prémios, traz à evidência a secundarização das crianças no âmbito da problemática da violência doméstica. Em regra, quando se discute violência doméstica pensamos em agressores homens e vítimas mulheres. As crianças, porém, tendem a ser esquecidas ou, pelo menos, encaradas como um mero “apêndice” da vítima.

A realidade, porém, é que o número de crianças mortas em contexto de violência intrafamiliar não é negligenciável, como o demonstrou mais uma vez o infame homicídio da pequena Valentina, em Peniche, há poucos meses atrás. Nas estatísticas que a autora cita, verifica-se um femicídio por semana na Austrália em contexto de violência doméstica, e um infanticídio a cada 15 dias…

LEI

Por outro lado, mesmo nos casos em que as crianças não sofrem violência física, mas vivenciam episódios violentos ocorridos em contexto doméstico, elas não deixam de ser vitimizadas. É sabido, na verdade, que os acontecimentos negativos vivenciados na infância são potencialmente traumáticos e podem ter um impacto negativo no seu desenvolvimento e bem-estar. Dizem também os especialistas que presenciar, na infância, comportamentos abusivos pode motivar fenómenos de repetição, na idade adulta, com o consequente risco de perpetuação destes comportamentos.

Há, pois, que fazer um sério esforço de consciencialização dos intervenientes em processos judiciais que afetam crianças para a problemática da violência doméstica e, muito particularmente, para a necessidade de proteger as crianças, mesmo que não sejam elas diretamente agredidas física ou verbalmente.

Vem isto a propósito de um processo judicial que conheço e atualmente em curso num tribunal de família e menores. Os filhos do casal são sujeitos a tremendos episódios de violência – violência verbal, é certo, mas violência não obstante. Ambas as partes relataram, nas peças escritas remetidas ao processo, episódios ocorridos em que se evidenciava a exposição dos meninos ao conflito parental, as sucessivas idas da polícia a casa do casal, etc. Sucede que, convocados os pais para a conferência,  esperar-se-ia que esta fosse uma questão central – a questão central! – a decidir pelo tribunal. Na realidade, e pesem embora os apelos dos advogados de ambas as partes, assim não sucedeu, limitando-se o tribunal a dar cumprimento formal ao que a lei prevê, e não esboçando sequer uma tentativa de proteger estas crianças. Lamentável.

É inegável o caminho que tem sido feito no nosso país, e também nos tribunais, em matéria de defesa dos direitos das crianças. E, aliás, atrevo-me a dizer que a esmagadora maioria dos tribunais de família e menores em que habitualmente trabalho agiria de forma diversa. Não assim neste dia e neste concreto tribunal, a lembrar-nos que muito há ainda por fazer em matéria de proteção das crianças.

Nuno Cardoso Ribeiro
Advogado, mediador familiar e formador. Licenciado em direito e pós-graduado em Direito das Crianças, Família e Sucessões e também em Contencioso Administrativo. Fundador e presidente da direção da AAFC – Associação dos Advogados de Família e das Crianças

 


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