Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – Os microcosmos

Licínia Quitério

De ontem e de hoje – Os microcosmos
por Licínia Quitério

 

Em pequena, eu construía jardins, miniaturas de jardins. Uma pétala era uma flor, um pecíolo um tronco de árvore, uma folha podia ser um lago, que um jardim sem lagos não é jardim. Folhas secas esmagadas desenhavam caminhos por entre aquela vegetação toda. Eu preocupava-me com a simetria dos canteiros, por isso os meus microjardins pareciam-se com os jardins barrocos, digo eu agora.

Eu gostava de construir mundos pequeninos onde me pudesse passear sem ser levada pela mão. Mundos sem os perigos que os adultos temiam. Revolvia a terra com as mãos na cata de pedras minúsculas, de preferência de várias cores. Ocupava muito tempo a limpá-las e depois a construir com elas cidades pequeninas. Uma pedra uma casa, outra pedra outra casa, muitas casinhas. Só faltavam as pessoas, ou não faltavam, porque às vezes eu podia vê-las, muito apressadas, de casa em casa. Algumas corriam e eu só não podia saber de que cor eram os olhos delas, porque isso era muito difícil de pensar.

Também gostava de ver as minhas cidades vermelhas, com pessoas vermelhas, que subiam e desciam e saltavam nas brasas da lareira. De manhã já não havia ninguém nessas cidades que passavam a ser escuras, sem graça, e eu queria mesmo era saber para onde tinha ido toda aquela gente que eu tinha visto ao serão.

Os meus jardins cresceram, as cidades também, e hoje sei que há de facto cidades vermelhas de gente viva e cidades escuras de gente morta. Sei, e por isso, sempre que observo o fogo na lareira, volto a admirar aquela gente pequenina numa grande azáfama, a subir, a descer, a saltar.

Às vezes adormeço e, quando acordo, a lenha já não arde. Levanto-me sem olhar para a escuridão das cidades, quero dizer, da cinza no chão da lareira.

Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019) – dois contos – Disco Rígido e Disco Rígido – Volume II – três romances – Os Olhos de Aura;
A Metade de um Homem e A Tribo (em publicação) – participações em antologias – Cintilações da Sombra 2; Cintilações da Sombra 3; Clepsydra – e uma tradução (do castelhano) O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

 


Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.


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