Crónica de Alice Vieira | Uma noite em Buenos Aires

Alice Vieira

Uma noite em Buenos Aires
Por Alice Vieira

 

Depois de Lisboa e da Ericeira não há terra mais bonita que Buenos Aires.

Aqui há uns anos fui convidada para ir trabalhar com as crianças de uma cidade argentina chamada Resistência, capital da província de El Chaco. É a província mais miserável da Argentina. Basta dizer que a capital só tem uma rua alcatroada.

Mas há lá um homem extraordinário, o escritor Mempo Giardinelli, que tem uma fundação que se ocupa da educação das crianças, convidando escritores, pintores, músicos, etc,  para trabalharem com elas. E promove ainda um convívio diário entre avós e netos, em que os avós contam aos mais novos o que foi a sua vida, a história do país—e os netos contam-lhes aquilo que vão aprendendo agora. No fim do ano há uma grande festa e prémios para os melhores.

No ano em que lá estive havia mais dois convidados, um escritor de Cuba e um músico do Uruguai.

Não é fácil trabalhar com aquelas crianças, mas é um grande desafio.

E no final, para nos agradecer o esforço, a organização deu-nos três dias em Buenos Aires.

É claro que nunca nos deitámos.

Íamos  dançar o tango ao El Caminito, uma rua de casas coloridas , lojas de artesanato, bares e tango dançado pelas ruas até altas horas. E se não tivéssemos par, havia logo alguém a oferecer-se. Lembro-me de ver o Rafael dançar com uma dessas bailarinas que ostentava um letreiro nas costas: “as mais belas pernas de tango de há 30 anos…”

Chegávamos ao hotel lá pelas 7 da manhã, tomávamos um duche e voltávamos para baixo para descobrirmos mais encantos da cidade,  a Praça de Maio,  O Teatro Colón, El Ateneo  ( a mais bela livraria que alguma vez vi, um enorme teatro aproveitado para livraria, sem terem modificado nada), comer uma empanada em qualquer café

No último dia– porque de manhã tínhamos aviões para apanhar e iam levar-nos cedo ao aeroporto– chegámos ao hotel lá pelas  4 da manhã, a escorrer suor pela cabeça abaixo.

Íamos pedir as chaves dos quartos quando o Rafael (o cubano) pega em mim e ainda ali dá mais uns passos de tango, e rimos muito, e ele , “ depois de velho é que me deu para isto..”, e mais uma gargalhada, até que olhámos para a cara do homem, com umas trombas de meter medo.

“É muito tarde”, digo eu para o Rafael, “estamos a fazer muito barulho”

Lá nos calámos, eles foram puxando o elevador e eu pedindo as chaves.

É então que o homem da recepção olha bem para mim e diz-me, de dedo muito espetado em frente da minha cara:

“Ninguém é velho em Buenos Aires. Ouviu bem? E diga-lhes a eles .Ninguém é velho em Buenos Aires.”

Quase que me atira as chaves pela mesa, e sumiu, furioso com a  ofensa.

Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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