Crónica de Licínia Quitério | De ontem e de hoje – O Cadeado

Licínia Quitério

De ontem e de hoje – O cadeado
por Licínia Quitério

 

Tocou à campainha. Vinha de robe azul claro, chinelos de tiras, os braços apoiados em canadianas, e tremia e dizia, desculpe, desculpe, eu estou muito aflita, se a senhora me fizer o favor de me ajudar, o telemóvel, não percebo de telemóveis, quero telefonar ao meu filho, ele ainda não apareceu hoje, estou muito aflita, não consigo ligar-lhe, aparece um cadeado, eu não percebo nada destas coisas, se a senhora puder. O meu marido, o meu marido desapareceu, está maluco de todo, tem Alzheimer, saiu e ainda não voltou, deixou a casa toda por arrumar, o lixo espalhado e eu nesta desgraça é que tive de juntar tudo, ai se a senhora puder.

Mora ali mesmo em frente há relativamente pouco tempo, nunca tínhamos falado, mas ela achou que eu a podia ajudar, tinha-me visto entrar em casa.

Pronto, o cadeado já desapareceu, quer ligar, quer que eu ligue, como se chama o seu filho, não, esse nome não vem na lista, vem uma R. Sim, pode ser, é a minha nora, não gosto dela, ela é muito má para mim, mas ligue a senhora, faça-me mais esse favor.

Falou com a R., sem animosidade aparente, falou, falou, despediu-se. Já estava mais sossegada, ai se não fosse a senhora, que deus lhe pague, ai.

Ajudei-a a levantar-se do cadeirão que ela achou muito maciozinho, atravessei a rua com ela, a ampará-la, uma eternidade, felizmente não passou nenhum carro. Não conseguiu abrir a porta com a chave que trazia pendurada ao pescoço, os dedos não têm força, muito obrigada, deus lhe pague.

Fez-me pena. Ela já deve ter muita idade, está aleijada numa anca, tem o marido “maluco”, tomara que ele não volte, disse, não me serve para nada.

Tinha um cadeado no telemóvel, os pés muito inchados e uma grande raiva pela vida, a vizinha que hoje me tocou à porta.

Licínia Quitério
Licínia Correia Batista Quitério nasceu em Mafra em 30.Jan.1940. Foi professora, tradutora e correspondente comercial. Tem publicados sete livros de poesia – Da Memória dos Sentidos; De Pé sobre o Silêncio; Poemas do Tempo Breve; Os Sítios; O Livro dos Cansaços; Memória, Silêncio e Água; Travessia (Menção Honrosa do Prémio Internacional de Poesia Glória de Sant’Anna 2019) – dois contos – Disco Rígido e Disco Rígido – Volume II – três romances – Os Olhos de Aura;
A Metade de um Homem e A Tribo (em publicação) – participações em antologias – Cintilações da Sombra 2; Cintilações da Sombra 3; Clepsydra – e uma tradução (do castelhano) O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.

 


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