Crónica de Alexandre Honrado – Também sou uma estátua de Vieira

Alkexandre Honrado

Também sou uma estátua de Vieira
Por Alexandre Honrado

 

Partidos como aquela massa viscosa que se tem manifestado impunemente a favor das sombras mais terríveis do passado, fazendo acreditar que na repressão e na ordem imposta de outrora é que se encontra uma virtude redentora e falsamente benéfica e de salvação nacional, são consequências do tempo, emanações de espaços desorientados e sobretudo consequências da conivência impotente de povos impreparados, pouco esclarecidos, pouco cultos e sobretudo desinteressados do seu próprio destino – povos que mais tarde irão ter as gerações suas herdeiras às voltas com a ditadura e a amarga herança que lhes legaram.

Portugal já passou por isso. Em momentos de grande desorientação o País pediu para ser esmagado e amordaçado como inseto, rogando a altares bacocos que o considerassem como povo sem alma e desprovido de personalidade. Esse povo saiu então à rua para saudar a repressão, o ditador, a sua pequenez mesquinha, e o resultado viu-se em décadas de atraso, de guerra, de repressão, de falta de liberdades, de visões estreitas e prudentes que lançaram populações inteiras na miséria, louvando a mediocridade e a barbárie, perseguindo a transcendência e a cultura beneficiadora da libertação e da liberdade dos povos. São assim os povos que sofrem com fome de Deus, que afinal não é mais do que o sintoma enganador de serem, e apenas, tolhidos pela escassez de realidade libertadora que os alimente e dignifique.

Este Portugal da “apagada e vil tristeza” tem agora os seus saudosistas, de uma pequenez intelectual confrangedora e incapazes de acolher qualquer tipo de genialidade, pondo-se com alegria alarve ao serviço dos valores mais retrógrados e de perspetivas fartamente estagnadas. São vírus contagiantes, estiveram escondidos como os ácaros, os seus avós foram uma elite ou parasitas dela, chegou o seu tempo de saírem da cloaca que os aninhava.

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Há ainda quem confie na sempre possível redenção histórica da História, essa que mostra a justiça, que impede que palavras estruturais como Povo ou Pátria sejam cativas de interesses evidentemente contra os povos e a Pátria a que têm direito. (Nada mais repelente do que ver essas palavras em certas bocas, capazes de dizerem mais e pior na mesma construção frásica).

Fala-se hoje de que há racismo em Portugal. Pois há. Como há xenofobia, como há fascismo; como sobretudo há fascismo e fascistas, esses eternos perdedores que estendem o braço para saudar os seus ídolos derrotados. Há isso tudo. Porque a revolução feita em abril foi muito complacente e viu mais cravos do que percevejos. Mas também há uma Democracia de resistência. E resistentes.

O Padre António Vieira, estupidamente vandalizado há dias, na figura simbólica mas dispensável de uma estátua pública, escreveu no século XVII que “Todos os homens prometem a Deus o dia de amanhã, e quase todos dão ao demónio o dia de hoje”. Mesmo os ateus gostam de meditar sobre estas palavras, do Sermão de Segunda Feira  depois da Segunda Dominga da Quaresma [1651], que encontramos no terceiro volume dos Sermões. Até porque os ateus não têm de perder tempo a vandalizar símbolos alheios, só porque não encaixam nos seus medos.

Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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