Crónica de Alice Vieira | Onde estavas no 25 de Abril?

Alice Vieira

Quando me fazem  a inevitável pergunta “onde é que estavas no 25 de Abril?”, eu respondo logo: “no Coliseu, a assistir a uma récita memorável da “Traviata” com o Alfredo Kraus e a Joan Sutherland. “ Eles vieram ao palco agradecer não sei quantas vezes, as pessoas atiravam cravos para a plateia, foi lindo.

(Depois disso entrevistei o Alfredo Kraus uma série de vezes, e no final de cada entrevista ele fazia sempre questão de dizer: “não se esqueça de escrever aí que os primeiros cravos da vossa revolução foram para mim”)

Mas nesse dia, quando o público e os artistas saíram, já havia tropa na rua. E conta-me o músico  (e meu amigo)  Adriano Jordão , oficial miliciano nessa altura, que a Joan Sutherland, ao olhar as chaimites, exclamou, embevecida: “meu Deus, tudo isto para mim…”

Adiante. Lá cheguei a casa , ouvi a rádio, o que se estava a passar, e claro que de manhãzinha vim logo para a rua.

Lembro-me de subir as escadas do “Diário Popular”, o jornal onde eu então trabalhava, de ir directo ao chefe de redacção que estava, impávido e sereno ,à secretária. Anteriormente eu tinha trabalhado no “Diário de Lisboa”, e estava mal habituada, quer dizer, ali era a censura que nos cortava os textos—mas toda a redacção,  incluindo os chefes e directores, faziam tudo para aldrabar a censura. No “Diário Popular” eu dizia sempre que a Censura nem devia ter grande trabalho connosco porque o chefe de redação cortava tudo antes. Era um favorzinho que ele fazia ao lápis azul…

Chego-me ao pé dele , com vontade de o puxar pelo casaco, mas só disse: “se o senhor hoje me corta nem que seja uma vírgula, eu nunca mais ponho aqui os pés”

Ele nem olha para mim e só diz, alto e bom som: “minha senhora, fique sabendo que nesta casa nada mudou”.

Saí porta fora –e nessa tarde ele era saneado.

Respirei de alívio.

Mas para mim o 25 de Abril só terminou no 1º de Maio. Foi um dia único, em que não me lembro de ter ido a casa, não sei o que fiz no dia 26 ou 27, devo ter entrado e saído do jornal vezes sem conta, andei pelo Carmo e pelo Terreiro do Paço, lembro-me de estar ao lado de muitos camaradas meus, por exemplo o Adelino Gomes, que também nunca deve ter ido a casa, lembro-me de dois jovens que ainda foram mortos pela Pide ao pé das suas instalações, lembro-me da Junta de Salvação  Nacional, da libertação dos presos políticos—mas se me perguntam em que dia foi, não sou capaz de dizer. Eu andava lá, mas para mim foi tudo no 25 de Abril.

Mas lembro-me de ter pensado, quando andava com muitas pessoas a dar de comer e beber aos soldados que vigiavam as nossas ruas, “quando um dia escrever sobre isto não me hei-de esquecer que chovia a potes…”  É que nas revoluções antigas, os textos começam quase sempre por “ Nem uma nuvem toldava o céu…” … Disso lembro-me, até porque apanhei cada molha…

A seguir ao 1º de Maio, acalmei. Quer dizer, andei sempre num virote como todos os meus colegas, mas ao menos sabia em que dia estava.

Agora, acontece-me também um pouco isso: nunca sei em que dia estou. Já pus um calendário diante do computador e lá vou riscando os dias.

E tem de ser assim. Tanto nas revoluções como nas quarentenas não podemos perder a noção do tempo.

Alice Vieira
Trabalhou no “Diário de Lisboa”, no“Diário Popular” e “Diário de Notícias”, na revista “Activa” e no “Jornal de Notícias”.
Actualmente colabora com a revista “Audácia”, e com o “Jornal de Mafra”.
Publica também poesia e é considerada uma das mais importantes escritoras portuguesas de literatura infanto-juvenil.

Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Alice Vieira


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